Nuno Gomes Garcia conversa com Sérgio Mendes: «Há sempre mães que veem no escuro»

Sérgio Mendes nasceu em 1974, cresceu em Guimarães, rodeado de livros e florestas, e resolveu estudar Física enquanto escrevia poesia. Então, passado o marco dos 40 anos de idade – depois de vencer, em 2015, o Prémio de Literatura Infantil Pingo Doce – decidiu escrever o romance que acabou de sair há poucas semanas, editado pela Coolbooks, a chancela da Porto Editora para os novos autores.

Este romance de estreia, «O Quarto da Mãe», é uma viagem comovente ao universo de uma criança de oito anos que convive de perto com a loucura que lentamente se vai apoderando da sua mãe, no pequeno apartamento onde vivem, em Guimarães, no início dos anos 80. A sua mãe é russa e casou com um português.

Paralelamente, a história recua ao cerco nazi de Leningrado, que durou 900 dias, entre 1941 e 1944, retratando a infância dessa mesma mulher que, quarenta anos mais tarde, vai endoidecendo na cidade berço.

Esses anos de cerco trouxeram a desumanidade à sua vida, a fome extrema e a morte omnipresente. Um passado de pesadelo que explica sem concessões um presente angustiante.

Porém, mesmo em contextos de privação extrema, há sempre lugar para a esperança, o amor e a poesia, ou, neste caso, para a música, que aos poucos se torna o único elo de comunicação entre mãe e filho.

 

Sérgio, bastou-me ler duas páginas do teu livro para perceber que estava perante um grande romance, e essa qualidade advém, a meu ver, principalmente da tua capacidade para entrar na mente de uma criança. Ora, tu fazes esse exercício não com um personagem, mas com dois. Quais foram as tuas maiores dificuldades nesse exercício?

Eu tive um sonho, há uns anos, com a Sophia de Mello Breyner e ela disse-me para escrever para crianças… na altura, eu já escrevia poesia há muitos anos. Então, neste livro, eu tentei, numa fase inicial (este livro teve várias versões) ter um narrador na terceira pessoa, exterior, mas depois pus-me a pensar no que a Sophia me tinha dito e optei por um narrador infantil. Numa primeira fase, uma menina de 11/12 anos, em Leningrado, e, na segunda fase, em Guimarães, um menino de 8/9 anos. A maior dificuldade foi narrar aquilo que se vê através dos olhos de duas crianças. Acho que acabou por se tornar mais forte e mais intenso porque o livro é um espelho, eu tentei que o fosse, pelo menos, em que nós, com frases simples, porque os miúdos pensam de uma forma pura e simples, nos víssemos ao espelho e que nos fizesse recuar aos tempos da infância e compreendêssemos como aprendemos as primeiras coisas… Claro que foi um processo difícil, a linguagem é própria de uma criança e muitas vezes temos de condicionar a própria narrativa porque há coisas que um miúdo ou uma miúda ainda não sabem. Foi essa a principal dificuldade. Por outro lado, o facto de ser simples, do meu ponto de vista, torna tudo mais bonito ainda, o que, penso, será uma das qualidades da narrativa.

 

Sim, claro… e outra qualidade que se nota, Sérgio, e que é relevante neste teu romance, é a poesia que se respira na linguagem. Tu sempre escreveste poesia e és filho do poeta Firmino Mendes. Fala-nos do papel da poesia na tua prosa.

A poesia é, na minha opinião, a literatura que consegue dizer aquilo que não é exprimível. Por isso, um bom romancista, antes de mais, tem de tentar escrever poesia. No fundo, é fazer uma prosa poética porque a poesia tem uma certa musicalidade e a música é a arte que mais toca os corações. Eu cresci com muitos livros de poesia, o meu pai tinha em casa toda a poesia, que eu fui lendo, e muitos poetas iam lá a casa, eu conheci muitos deles, alguns com vidas difíceis. Então, procurei com a poesia homenagear esses poetas, usando a voz de um miúdo para escrever uma voz poética. No fundo, quando nós somos filhos de um poeta, essa forma de falar e de ver o mundo está enraizada em nós. Hoje, sabe-se que muitos dos medos e sonhos que nós temos foram experiências que os nossos pais tiveram e que ficam nos filhos. E o meu pai dedicou a sua vida aos livros e à poesia. Existem mudanças no próprio ADN dos filhos. Portanto, eu fui crescendo naquele ambiente de poesia só podia escrever um livro assim, onde a maneira de falar dos narradores está envolvida de música e da poesia que eu li desde pequeno.

 

Cresceste em Guimarães e colocaste lá a ação do romance. É uma cidade com densidade, com peso histórico, até com poesia, se quiseres… Foi um cenário que te surgiu com naturalidade?

O cerne do romance passa-se em Guimarães, no Campo da Feira, com a Igreja de São Gualter ao fundo… Ora, eu cresci ali. E recordo-me de ver aqueles jardins e aquelas árvores. Recordo-me ainda de ver o Toural com árvores. Ou seja, aquela Guimarães que está no livro é a Guimarães dos anos 1980. Agora, a cidade está um bocado diferente. Quem ler o livro situa-se perfeitamente, reconhece toda aquela envolvência. Eu quis fazer uma homenagem à minha cidade que, no final de contas, também é o berço de Portugal.

 

Não te vou contrariar nisso… há sempre um certo perigo que se corre quando se diz a um Vimaranense que isso de Portugal ter nascido em Guimarães não é assim tão líquido (risos). É perigoso… Mas, Sérgio, tu não dedicas o livro apenas à tua cidade. Tu dedica-lo também às «mães que veem no escuro» e essa frase deixou-me curioso. O que significa?

Eu vou tentar sintetizar a história. O livro começa no cerco nazi de Leningrado em 1941 em que três milhões de pessoas foram deixadas à fome, onde só comiam uma fatia de pão e gelo dos canais gelados do rio Neva. Acontece que o Dmitri Shostakovich compôs a Sinfonia nº7, também conhecida como Leningrado, que estreou em março, mas que depois foi mostrada ao público no dia 9 de agosto de 1941, que era o dia que os nazis julgavam que iam festejar a conquista da Rússia no hotel Astoria. Ora, o texto que está subjacente à Sétima do Shostakovitch é o Salmo 94, onde diz, no versículo 7, que o Senhor não vê o que nos está a acontecer. O Senhor de Jacó não vê o nosso sofrimento. Ora, eu dedico o livro às «mães que veem no escuro» porque apesar da escuridão, das sombras, do sofrimento, do caos, há sempre mães que veem no escuro e que salvam os seus filhos e que salvam o país. Se a União Soviética tivesse capitulado ali, Hitler e Franco já tinham decidido avançar sobre Portugal…

 

Sim, sim, existiam planos bem estruturados para levar isso avante…

Exatamente! Portanto, foi aquele povo russo que resistiu, que viu no escuro, porque não havia luz…

 

Durante os curtíssimos dias de inverno que são normais naquelas latitudes.

Sim, e não havia eletricidade por causa do cerco. Por isso digo que aquelas mães viram no escuro e aguentaram aquele sofrimento e aquele inverno com temperaturas de 32 graus negativos.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Gonçalo Naves autor de «É no peito a chuva»

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