Próximo filme de Cristèle Alves Meira vai contar a história da portuguesa que inspirou “Joe, le Taxi” de Vanessa Paradis


Com 42 anos de idade, a franco-portuguesa Cristèle Alves Meira, realizadora do filme multipremiado “Alma Viva”, que já foi candidato português aos Óscares, está agora a preparar uma segunda longa-metragem, inspirada na canção “Joe, le Taxi” cantada por Vanessa Paradis. Esta canção foi inspirada numa taxista portuguesa, que percorria as ruas de Paris durante a noite e Cristèle Alves Meira quer contar esta história.

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Começou pelo teatro. Como é que a Cristèle chegou ao teatro?

É uma boa pergunta porque lá em casa não se ia ao teatro. Eu nasci em França, de pais portugueses. Eles conheceram-se aqui, emigraram naquela vaga de emigração dos anos 70. Nasci em 1983 e a primeira vez que eu ouvi falar de teatro foi na escola francesa. Com 13 anos, um professor de francês fez-me ler a “Antígona”, a peça de teatro do Jean Anouilh. Para mim foi uma revelação e a partir daquele momento este professor ajudou-me a encontrar um curso de teatro em Paris. Eu vivia em Montreuil (93) e, de certa forma, há uma fronteira entre os subúrbios e Paris. Para mim, foi mesmo o teatro que me fez descobrir a capital. Foi assim que fui caminhando neste caminho do teatro, com cursos para ser atriz e depois entrei na Faculdade, num curso de artes do espetáculo, na Universidade de Paris 10.

E quando terminou o curso criou a sua própria companhia…

Criei a minha companhia de teatro, comecei a juntar gente, constituí equipas e fui assim criando espetáculos durante 10 anos. Quem me profissionalizou foi o Diretor do Théâtre de l’Athénée Louis-Jouvet. Ele descobriu a minha encenação de “Os Negros” de Jean Genet, que eu tinha feito na Cartoucherrie de Vincennes, e apostou no meu trabalho. Depois foi uma aventura durante três ou quatro anos com aquele teatro italiano muito lindo em Paris. Mais ou menos há 10 anos atrás, cansei-me do teatro porque era muito difícil conseguir patrocínios. Eu era a Diretora da minha própria companhia, então tinha de fazer a produção dos espetáculos, encontrar financiamento, fazer as fichas de salário dos atores e isso tudo trazia muita angústia e impedia-me de trabalhar a área artística, para ser sobretudo a gestora de uma empresa. Então decidi parar com o teatro e começar a fazer cinema.

Mas porquê o cinema?

Eu já tinha uma ligação com a imagem. Já tinha feito documentários em Cabo Verde e em Angola, sem fazer escola de cinema, foi mesmo por mim própria, autodidata. Então sempre tive uma vontade de chegar à imagem. E por acaso foi a minha ligação com Portugal que me permitiu passar do teatro para o cinema. Estava mesmo com vontade de filmar a aldeia da minha mãe, naquela zona de Trás-os-Montes, uma aldeia que eu conhecia muito bem por lá ir todos os anos, no verão, no concelho de Vimioso. Ouvia contar muitas histórias sobre as pessoas da aldeia e sentia que havia ali histórias para contar e não era pelo meio de teatro, mas sim pelo cinema. Eu queria filmar paisagens, os rostos, as vozes e a forma de falar das pessoas. Ora, o cinema é o melhor meio para contar isso. E foi assim que decidi fazer cinema e até chegar ao “Alma Viva” foram quase 8 anos de escrita, de procura de financiamento, até conseguir filmar a minha primeira-longa metragem. Então, deixei definitivamente o teatro e estou mesmo focalizada no cinema.

Passar 7 anos a produzir um filme, não é muito tempo de produção e pouco tempo de trabalho artístico?

Eu não me ocupo da área de produção. Encontrei produtores que se ocupam da parte financeira e foram mesmo 7 anos de trabalho de escrita, porque eu não fiz uma escola de cinema. Então, esse tempo foi um tempo de aprendizagem a lidar com a gramática do cinema, o que quer dizer escrever um guião, qual é a forma de tornar uma história cinematográfica… E ao mesmo tempo que eu escrevi a longa-metragem, comecei a realizar curtas-metragens e a aprender também a fabricar, a criar um filme por mim própria. Acho que a escola do terreno, a experiência, é uma boa escola.

O filme “Alma Viva” teve um grande sucesso. O que mais a marcou neste processo?

Para ser sincera foi uma surpresa porque na verdade quando eu escrevi a história, eu sentia-a. Escrevi mesmo uma história muito íntima, com lembranças, memórias que têm a ver com a minha aldeia, a minha família e com a minha infância. Então eu senti uma coisa muito especial e singular que tinha a ver com essa relação com a França e Portugal, essa forma de falar e de misturar francês e português numa mesma frase. Isso tudo para mim era uma singularidade e não sabia na verdade como é que esta identidade iria ser recebida. E foi mesmo uma grande surpresa e um grande orgulho de ver que, numa história muito íntima, numa cultura muito específica, tem temas universais que vão tocar pessoas do Japão, da Rússia, da China… do mundo inteiro. E claro que fiquei muito satisfeita de sentir que consegui fazer o retrato sincero, justo, não caricatural, dessa identidade franco-portuguesa na qual eu me reconheço.

Isso era importante para si?

Era muito importante. Importante ser sincera e não tentar dar um ar nem muito positivo, nem muito negativo, tentar estar na realidade, com as contradições que conhecemos nessa dupla cultura e nas famílias. Fiquei muito contente e orgulhosa.

E agora, qual vai ser o seu próximo filme?

Vou continuar nestes temas da imigração e de retrato porque estou a escrever uma segunda longa-metragem que é inspirada também da vida real de uma mulher que emigrou para França e que inspirou uma música muito conhecida francesa “Joe, le Taxi” de Vanessa Paradis. É um sucesso mundial e muito pouca gente sabe que por detrás dessa música, está uma mulher portuguesa que vem de uma aldeia do distrito de Castelo Branco, que emigrou e que era taxista em Paris durante noite. Ela inspirou essa música e por detrás dessa vida de mulher taxista noturna, também há uma mulher que toda a vida quis assumir a identidade dela. É uma vida muito inspiradora, uma mulher desconhecida, que se torna lenda que vem de Portugal. Eu preciso de me sentir legítima ao contar uma história e acho que o melhor ponto de vista que eu posso ter é este: alguém que nasceu em França e que olha para Portugal. Por exemplo, José Vieira passou quase a vida inteira – e ainda continua – a contar a história da imigração portuguesa para França, mas muitas vezes são documentários. Em termos de ficção cinematográfica, temos poucos filmes, temos alguns, muito fortes, de Maria de Medeiros ou de Rúben Alves, mas temos muitas coisas para contar ainda e acho que temos de aproveitar.

Qual é a aceitação dos outros realizadores, da gente ligada ao cinema? Ser lusodescendente ajudou-a ou foi um obstáculo?

Vou contar uma anedota. O primeiro passo para Portugal foi um pouco estranho. Foi com a minha primeira curta-metragem, “Sol Branco”. Foi um filme que eu fiz enquanto autodidata e com autofinanciamento. De repente, começou a ter seleções em festivais em França e noutros países. Foi um filme que eu filmei na aldeia da minha mãe. Mas não surgiam seleções para Festivais portugueses. Eu fiquei surpreendida e a dado momento, num festival em França, conheci programadores de festivais portugueses. Fui falar com eles: “Bom dia, sou a Cristèle Alves Meira, fiz este filme, mas não tive respostas de Portugal, porquê?”. E a resposta que uma pessoa me deu foi: “Pois, mas tu tens o Bilhete de identidade português?” Eu achei que era uma resposta radical e respondi: “Claro, eu sou portuguesa também”. Eu senti que tinha de justificar a minha identidade portuguesa para poder solicitar uma programação e para poder ser reconhecida como realizadora portuguesa. Desde então, os meus filmes passaram a ser selecionados em Portugal. No filme seguinte, que foi o “Campo de Víboras”, foi uma alegria representar Portugal em Cannes e o meu filme não era francês, era mesmo português. Foi a bandeira portuguesa que me permitiu chegar a Cannes, com certeza, porque há muitos filmes franceses e não sei se os meus filmes podiam passar pelo crivo da competitividade dos filmes franceses. Na verdade, nos meus filmes falam português, a identidade é mais portuguesa, porque são filmados em Portugal, com língua portuguesa maioritária, mas são feitos por uma realizadora franco-portuguesa.

Mas sente-se mais portuguesa ou mais francesa?

Depois do grande sucesso de “Alma Viva”, eu sinto-me mais portuguesa do que francesa. É muito estranho dizer isto, mas o meu objetivo agora é conquistar a França, tentar, no próximo filme, reconquistar a França, com mais cenas em língua francesa, para chegar à identidade francesa. Os meus filmes também são produzidos internacionalmente, o que de certa forma, me impede de ser reconhecida como uma realizadora francesa.

Como é que os Portugueses de França são vistos? A imagem mudou em relação aos seus pais?

Eu acho que não há preconceitos negativos. Quando comecei a fazer filmes sobre a minha história em Portugal, era uma riqueza e sempre criou muita curiosidade. Por exemplo, quando eu procurei financiamentos aqui em França, sentia grande curiosidade da parte dos cineastas, porque são histórias que eles não conhecem. Havia uma singularidade e então senti muito rapidamente que a minha identidade portuguesa era uma força no cinema. No teatro já é uma outra história, porque no teatro eu não estava a evocar a minha portugalidade, era uma encenadora de peças francesas, Jean Genet por exemplo, e na verdade, ninguém sabia que eu era portuguesa. Eu sinto muita curiosidade pelos meus pais, falei muito da vida deles porque os meus filmes inspiram-se da vida deles.

E eles, como vêm esta situação?

Eles às vezes sentem um pouco vergonha e têm medo do que as pessoas possam pensar da sua realidade. Há coisas que, para eles, são negativas, são uma vergonha e eu chego e digo: “isso não é uma vergonha, é a nossa força e eu quero assumir, não quero esconder-me”. Eu sei que a minha mãe não gosta quando eu falo disso, mas a verdade é que a minha mãe não teve a oportunidade de fazer estudos. Eu lembro-me que, cada vez que íamos ao doutor, fingíamos e escondíamos a nossa origem. Agora, eu sinto a vontade de dizer aos meus pais: “Não vamos fingir, vamos assumir o que somos” e eu tenho muito orgulho da nossa história e quero também transmiti-la aos meus filhos, quando estiverem em idade de compreender, que o avô deles passou a fronteira de forma clandestina para fugir a um regime fascista e para fugir às guerras coloniais. Isso faz parte da história dele. Quando chegou, não tinha nada, mas foi crescendo. Tiveram coragem e a ascensão social dos meus pais é incrível, eu quando vejo de onde eles vieram e onde eles chegaram, só podem ser um exemplo para os meus filhos. É incrível. Para mim, é importante não esquecer a memória, porque há muita gente que tem esta mesma história.

Na sua opinião, por que razão este tipo de história comum a tantas pessoas, nunca passa por arte?

Na verdade, não sei porquê. Há uma forma de invisibilidade em arte sobre esses tipos de história. Toda a minha infância, ser portuguesa era uma vergonha. Até troquei o meu nome para não se notar que era portuguesa. Hoje, tenho vontade de transformar essa vergonha numa força, mas muitas pessoas não alegam as suas próprias raízes. Houve, na rádio, uma interrogação sobre a questão da invisibilidade dos portugueses e até se tentou perceber de onde vem essa invisibilidade e porquê. Eu acredito que vamos ter mais lusodescendentes interessados nestes assuntos e que as mentalidades vão mudar e que nós vamos assumir a nossa história.

A sua filha, ainda na pré-adolescência, é atriz em ‘Alma Viva’. Como é que ela vê esta história com Portugal?

Ela tem uma relação com Portugal muito intuitiva e natural desde que nasceu. Nós vamos a Portugal muitas vezes por ano, porque eu tenho a tradição de ir apanhar a azeitona e fazer o azeite no mês de novembro. Depois, vou ver os meus pais e a minha irmã que estão em Lisboa e muitas vezes também vou no verão e na Páscoa. Também tenho um filho que tem 6 anos e é igual. O pai é francês, então eles têm também acesso à cultura francesa. Eu tento falar um bocadinho português com eles, mas não é fácil. Infelizmente, praticamente já não há escolas públicas que ensinam português. Para mim é importante que eles possam guardar uma ligação com a língua portuguesa.

Como é que a sua filha chegou ao filme?

Eu andei durante quase dois anos à procura de uma menina. Não encontrava e afinal, ela estava na minha própria casa. Ela sempre quis participar nos meus filmes, sempre foi curiosa de fazer atriz e tornou-se uma atriz ideal. Foi uma experiência muito forte entre nós, porque eu estava a transmitir-lhe uma herança de qualquer coisa, a história da minha família. A ligação com Portugal também passou através do filme. Ela continuou a fazer filmes, por acaso recentemente ela fez uma curta com uma outra realizadora franco-portuguesa, que tem a ver com várias gerações de uma família portuguesa. Ela quer aprender música com o pai, mas sempre por prazer. Guardamos sempre os pés bem assentes na terra, não esquecendo as nossas raízes, porque, às vezes, essa realidade de ser atriz de cinema e de ser famosa, também pode ser um caos. Os sonhos são importantes, mas têm de ser sonhos com humildade.