Saúde: Mentiras piedosas são aceitáveis?


O que é considerado uma mentira aceitável varia consoante a cultura, os valores individuais e até o contexto social. O que para uns é um gesto de delicadeza, para outros pode ser visto como desonestidade.

Algumas abordagens mais pragmáticas defendem que uma mentira piedosa é justificável se o seu benefício for maior do que o potencial dano. Afinal dizer que gostamos do presente que recebemos, mesmo que não seja verdade, pode evitar desnecessários sentimentos de frustração. Outras correntes argumentam que qualquer forma de mentira compromete a integridade moral, sugerindo que a transparência deve ser sempre a prioridade.

Apesar destas divergências, existe um entendimento generalizado de que pequenas mentiras sociais fazem parte da convivência humana. No fim, a questão não é apenas se a mentira piedosa é certa ou errada, mas sim qual o seu impacto. Será um gesto de empatia ou uma fuga à honestidade? Depende da perspetiva… e, claro, da intenção por trás da resposta.

Desde cedo, aprendemos que a verdade pode ser dura. Para evitar magoar ou criar desconforto, suavizamos palavras, omitimos detalhes ou recorremos a pequenas mentiras inofensivas – aquilo a que chamamos mentiras piedosas. Mas será que estas pequenas inverdades são essenciais para a harmonia social?

A psicologia social sugere que sim. Desde a infância, internalizamos a ideia de que nem sempre a honestidade absoluta é a melhor opção. Se alguém nos oferece um presente pouco do nosso agrado, dificilmente dizemos a verdade sem qualquer filtro. Em contextos sociais, esta regulação do discurso ajuda a evitar conflitos desnecessários e a preservar relações.

A Teoria da Cortesia, de Brown e Levinson, explica que ajustamos a nossa comunicação para proteger a “face” dos outros – a imagem social que cada um quer preservar. Pequenas mentiras podem, assim, reduzir atritos e tornando as interações mais fluidas.

Mas e se, de repente, eliminássemos todas as mentiras piedosas? O mundo tornar-se-ia, sem dúvida, mais honesto – mas também mais duro, mais frio e menos tolerante. A ausência destas pequenas suavizações da verdade não resultaria apenas em transparência total, mas também em mais conflitos, menos empatia e relações mais frágeis. Afinal, a sinceridade extrema pode ser uma virtude, mas também um desafio.

.

Nem todas as mentiras são iguais

Algumas surgem como um gesto de proteção, uma tentativa de suavizar uma verdade que poderia magoar. Outras, no entanto, escondem intenções menos nobres, servindo para controlar ou obter vantagem sobre alguém.

A diferença essencial está na intenção. Uma mentira piedosa procura proteger ou evitar um desconforto desnecessário – como dizer a um amigo que está ótimo, mesmo quando percebemos o seu cansaço, para não o desmotivar ainda mais. Já a manipulação tem um propósito diferente, distorcer a realidade em benefício próprio, muitas vezes explorando a confiança do outro.

Enquanto uma mentira piedosa tende a ser pontual e a minimizar danos, a manipulação cria distorções mais profundas, podendo levar a sentimentos de culpa, confusão e até perda de autonomia na pessoa manipulada.

Se a mentira piedosa funciona como um amortecedor social, ajudando a preservar relações, a manipulação pode corroê-las silenciosamente. No fundo, a questão não está apenas no ato de ocultar a verdade, mas no efeito que essa omissão tem sobre o outro. Afinal, uma verdade suavizada pode ser um gesto de empatia, já uma verdade distorcida para servir interesses próprios é um jogo de poder.

Nem sempre mostramos todas as facetas de quem somos. Ajustamos a nossa expressão ao contexto, regulamos reações e selecionamos o que partilhamos. À primeira vista, pode parecer que esta adaptação se aproxima de uma mentira piedosa, já que envolve omissão ou suavização de certos aspetos. No entanto, psicologicamente, trata-se de um mecanismo distinto.

Enquanto a mentira piedosa altera ou oculta a verdade para evitar desconforto, a adaptação do eu é uma estratégia de interação social. A Teoria da Autoapresentação, de Goffman, explica que este ajuste não significa falsidade, mas sim a capacidade de moldar a comunicação de acordo com o ambiente, facilitando a convivência sem comprometer a identidade.

O facto de alguém ser mais contido numa reunião de trabalho e mais expansivo num encontro com amigos não significa que esteja a enganar em qualquer dos contextos. Essa variação não nega a autenticidade, apenas reflete a complexidade das relações humanas. Mais do que uma forma de mentira, a adaptação do eu é uma forma de inteligência emocional.

.

Ser autêntico

A autenticidade tem sido romantizada como um ideal de verdade absoluta, muitas vezes confundida com agir sem filtros ou recusar qualquer tipo de adaptação. Mas, na realidade, ser autêntico não significa ser imutável. Pelo contrário, significa reconhecer a nossa essência e, ao mesmo tempo, compreender que somos seres em constante construção.

Muitas vezes, acredita-se que ser autêntico implica uma exposição total, como se só fôssemos verdadeiros ao revelar todas as nossas vulnerabilidades em qualquer contexto. Mas autenticidade não é impulsividade, nem ausência de limites. É saber quem somos e expressar isso de forma coerente com os nossos valores, sem comprometer o respeito por nós mesmos e pelos outros.

Ser autêntico não é ser sempre o mesmo, mas sim ser inteiro em todas as versões de nós. Não é dizer tudo o que nos passa pela cabeça, mas saber quando a verdade precisa de ser dita e quando o silêncio também fala. Não é agir sem filtros, mas encontrar um equilíbrio entre aquilo que sentimos e a forma como escolhemos expressá-lo.

A autenticidade não está na rigidez, mas na fluidez. Está na capacidade de nos adaptarmos sem nos perdermos, de mudarmos sem deixarmos de ser quem somos, ou seja, sendo fiéis a nós mesmos.

.

Dra. Ângela Rodrigues

Psicóloga e Psicoterapeuta

Clínica da Mente