Nuno Gomes Garcia conversa com Abílio Pires Lousada: “Em La Lys, os alemães não esperavam uma resistência tão forte”

Abílio Pires Lousada, Tenente-coronel do exército e historiador militar, escreveu um livro que atravessa mais de 800 anos de glórias e desaires portugueses. E é esse mesmo o título da obra, “Glórias e Desaires da História Militar de Portugal”, que começa com a Batalha de São Mamede em 1128, ano ao qual o autor chama “ano um de Portugal”, e termina com a perspetiva do autor sobre o Movimento das Forças Armadas que levou à Revolução do 25 de Abril e ao processo de descolonização.

Esta obra não esquece um dos eventos histórico-militares mais marcantes do século XX português e pelo qual os Portugueses a viver em França sentem especial afeição: a Batalha de La Lys (1918), momento dramático da Primeira República enquadrado na Primeira Guerra Mundial, um conflito que consistiu num verdadeiro suicídio europeu.

Nestes longos séculos de relações luso-francesas, o autor não esquece também as invasões napoleónicas, dedicando-lhes dois capítulos, sendo um deles sobre a derrota francesa na Batalha do Buçaco em 1810.

Estamos perante um livro de divulgação histórica escrito por um especialista e que tem a enorme vantagem de poder ser lido tanto de forma temática como de forma cronológica.

 

Comecemos por falar dessa terrível Batalha de La Lys. A certa altura no livro, o Abílio escreve que os Britânicos entenderam que a resistência da divisão portuguesa ficou aquém do desejado, embora os Alemães afirmem que a oposição foi superior à esperada. Como é que ficamos? Quem é que tem razão?

Nuno, isto tem de ser visto de uma perspetiva mais ampla, tem de ser visto pelos dois lados. É evidente que a prestação portuguesa foi complicada, difícil, e até mesmo suicida. Mas, de acordo com o plano inglês de colocar três divisões na linha da frente, uma portuguesa e duas inglesas, para servirem de muro, já se sabia que ele iria ser derrubado pela ofensiva alemã. Esse muro foi derrubado em poucas horas e os alemães progrediram no interior das linhas britânicas. Por outro lado, os alemães acabaram por encontrar um pouco mais de oposição do que aquela que estavam à espera, o que lhes retardou em algumas horas, talvez num dia, a progressão. Assim vistos dos dois lados, se quisermos dos três: os Ingleses acharam que as três divisões deveriam ter resistido mais e melhor; os Portugueses acharam que foram ali colocados como carne para canhão; e os Alemães não esperavam uma resistência tão forte, o que os impediu de chegar mais cedo ao rio Lys. Essas três visões conjugam-se.

 

E La Lys foi claramente um desaire para o exército português…

Foi um desaire, e um desaire que teve várias causas, algumas das quais explicadas no livro, mas que teve que ver essencialmente com a falta de oficiais, falta de soldados, falta de equipamento e armamento, além de a divisão ter sido colocada numa linha da frente na altura quando os soldados já tinham sido avisados que iriam ser rendidos dali a dois dias. Portanto, quando o ataque alemão acontece, os soldados portugueses, já muito desmotivados e descrentes, estão basicamente a emalar para abalar da linha da frente. E é nesse momento que os Alemães caem em cima deles.

 

Abílio, cem anos antes dessa Batalha de La Lys, onde os Portugueses eram aliados dos Franceses, a história foi outra. Num dos capítulos dedicados às invasões napoleónicas de Portugal, refere que a presença francesa em território português tinha todas as condições para vingar, mas que, apesar disso, o que aconteceu foi uma resistência popular de grandes dimensões contra o invasor. Pode explicar-nos esta aparente contradição?

As invasões francesas, como sabemos, foram três. A ocupação de 1808, depois a invasão de 1809 que quase se cingiu ao norte do país e por fim a de 1810, no livro até falo da Batalha do Buçaco e nas Linhas de Torres, que, de certa forma, se conjugam. Em 1808, os Franceses vinham com uma matriz absolutamente vencedora no centro da Europa, as tropas napoleónicas eram vistas com um exército quase invencível e quando Junot chega a território português consegue entrar em Lisboa calma e serenamente, apesar de vir com um exército totalmente esfarrapado, fruto dos elementos, ele apanhou um tempo péssimo, os caminhos de Espanha para Portugal eram péssimos, as populações pouco atreitas a colaborar, escassez de alimentos, poucos recursos. A ideia era não resistir aos Franceses para que Portugal e os Portugueses não sofressem as consequências. E o Junot instalou-se, e bem, no Palácio Quintela. O problema começa a partir do momento em que se acicata não apenas as elites, mas sim a arraia-miúda. Os Franceses ocupam-lhes as casas, consumem os alimentos que já escasseavam, extinguem o exército português para impedir qualquer resistência. Tudo piora quando se afronta a Igreja. Ocupam-se igrejas, rouba-se tudo o que era talhe, ouro, quadros… foi como se tivesse acicatado o pastor que a partir das igrejas começa sistematicamente a exortar as populações a resistirem contra a ocupação francesa. Entramos então numa situação de rebelião que depois evolui para o estado de guerra. Foram nove meses de martírio para as populações portuguesas, que sofreram muito, enquadradas por alguns oficiais portugueses que não se colocaram ao serviço de Napoleão. Temos então uma guerra atípica com que os Franceses não contavam: não estão a lutar contra um exército mas sim contra grupos armados de populações.

 

Uma guerrilha.

Autêntica guerrilha. São grupos armados dispersos por várias populações para os quais as tropas de Junot não encontraram antídoto. Aliás, Napoleão iria sentir isso novamente, ainda de uma forma mais vincada, quando invadiu a Rússia.

 

O Abílio fala a certa altura da “típica guerra à portuguesa” feita de ciladas e artimanhas que permitiram ultrapassar deficiências técnicas ou insuficiências quantitativas. Pode dar-nos um ou dois exemplos dessa inventividade lusitana? Essa “inventividade” também foi evidente durante as invasões francesas?

Sim, notou-se durante as invasões napoleónicas, nas campanhas de 1808 e de 1809. Levantou-se um estrato social e combateu-se a partir dos montes, das aldeias, numa resistência muito ad hoc, mas que foi sendo sistematicamente organizada. É uma maneira muito portuguesa de fazer a guerra e de resistir ao invasor. Em relação áquilo que o Nuno disse sobre a “guerra à portuguesa”, eu coloco no livro dois ou três exemplos interessantes. A conquista de Santarém em 1147. Uma conquista de D. Afonso Henriques em plena noite, em março, com mau tempo, mediante uma escalada de muralhas que surpreende completamente os mouros e, ainda por cima, com gente infiltrada no castelo. Na Idade Média não se combatia no inverno, muito menos em março e com condições meteorológicas adversas. Temos também a Batalha da Salga, nos Açores em 1581, que é pouco conhecida, e é um bom exemplo da prática portuguesa. O desembarque espanhol das tropas de Filipe II, que já era Rei de Portugal, note-se, ele não estava presente, mas sim os seus almirantes. Eles desembarcam no Campo da Salga, na ilha Terceira, e aquilo que a organização militar e popular açoriana decide fazer para tentar rechaçar essa invasão é reunir tudo quanto é boiada e pô-los a trote em direção aos castelhanos naquilo que foi uma grande confusão e serviu para desarticular a matriz de combate castelhana. Uma vitória que os próprios açorianos têm bem vincada na própria bandeira.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Manuela Gonzaga, autora de “Les Jardins Secrets de Lisbonne”

Quarta-feira, 14 de outubro, 9h30

Domingo, 18 de outubro, 14h25

 

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