Nuno Gomes Garcia conversa com Catarina Barreira de Sousa

Catarina Barreira de Sousa lançou há pouco tempo o seu primeiro livro: “Alice no País de Gil Vicente”. Um livro que pretende levar os jovens leitores a viajar no Portugal do século XVI através dos personagens de Gil Vicente, o maior dramaturgo português de todos os tempos.

A Catarina nasceu em Albi em 1977, viveu em Bordeaux, em Chaves, no Porto e estudou Línguas e Literaturas Modernas em Coimbra. Hoje, vive em Lausanne e é professora de português.

“Alice no País de Gil Vicente” conta-nos as aventuras de Alice, uma adolescente, que um dia desapareceu misteriosamente para, mais tarde, acordar entre a vida e morte no cais do “Auto da Barca do Inferno”. Prisioneira naquele mundo vicentino, ela parte à procura de Gil Vicente, o único que a poderá ajudar a encontrar a saída. Assim, Alice, acompanhada do Sr. Parvo (que nos reserva uma surpresa final), parte numa longa aventura encontrando a cada passo os personagens criados por Gil Vicente.

Um livro que é uma viagem iniciática ao mundo de Gil Vicente, ali entre a Idade Média e o Renascimento, e que permitiu a Catarina Barreira de Sousa, graças à sua criatividade, sair do registo académico e proporcionar aos jovens uma muito divertida aventura de descoberta.

 

Catarina, estiveste na Gulbenkian de Paris há umas semanas no âmbito de um trabalho com os alunos da Secção Portuguesa do Liceu Internacional de Saint Germain. Como correu?

Foi uma ótima surpresa, correu muito bem. Eu já sabia que os alunos tinham lido a obra porque tive contacto prévio com os professores de português. Eles fizeram perguntas sobre a obra, concretamente, sobre a história, as personagens… Isso para mim foi uma novidade porque no geral as perguntas são mais abstratas. E portanto para mim foi também uma forma de redescobrir, de ter uma perspetiva diferente sobre aquilo que escrevi porque me obriga a pensar noutras possibilidades. Por outro lado, foi muito bom também eles poderem participar não só com perguntas, mas também com leituras precisas.

 

Também fizeram uns vídeos, não foi?

Sim, os trailers foram muito divertidos, muito engraçados. Mas não foi só isso. Eu sabia que ia haver uma pequena apresentação da obra. A grande surpresa foi que essa apresentação foi dramatizada. Ou seja, três alunos, cada um representando uma das personagens – a Alice, o André e a Inês, que são três adolescentes – imaginam o regresso de Alice e o que é que Alice lhes vai contar sobre a tal viagem que fez ao mundo de Gil Vicente. E dramatizaram esse diálogo, o que foi muito giro. Eu fiquei deliciada.

 

Explica-nos então o que representa Gil Vicente para a Literatura portuguesa.

Desde logo, Gil Vicente é considerado o pai do Teatro português.

 

É uma espécie de Shakespeare português, de Molière?

Sim. Quando tento explicar a Franceses ou a Suíços quem é Gil Vicente, eu faço sempre essa comparação, mas, para mim, ele é muito mais do que isso. Gil Vicente é um Molière avant la lettre, antes do seu tempo, porque ele é de facto o criador do Teatro português. Antes dele o que existe são formas teatrais muito rudimentares, associadas à liturgia. Não havia um Teatro literário. Não havia nada. E de repente ele escreve quarenta e quatro peças. É incrível. E ao longo dessas quarenta e quatro peças, ele vai evoluindo. O Teatro dele não é homogéneo, é muito diversificado. Gil Vicente é um baú de surpresas. Nós encontramos ali de tudo. Encontramos o ser humano, as desgraças, as tristezas, as alegrias… e depois há a crítica social que é incrível. É muito divertido. Eu costumo compará-lo aos humoristas atuais, por exemplo ao Ricardo Araújo Pereira…

 

Que também tem algo de Vicentino.

Sim, sim. Para mim, o humor é uma forma superior de inteligência. Gil Vicente faz o retrato total da sociedade. Todas as camadas desde o fidalgo aos frades, passando pelas noivas em busca de casamento e pelos velhos que se apaixonam por jovens. Está ali tudo, a comédia humana portuguesa está ali. Claro que se localiza no final da Idade Média, no século XVI, mas não só é atual, como é universal. O ser humano está ali. Estes quadros ajudam-nos a refletir sobre a nossa própria vida. Gil Vicente é um grande humanista. Humanista no sentido em que se interessa pelo ser humano. E isso passa por denunciar as injustiças e por defender os mais humildes. Para além disso, ele é o mestre da vida. Existe uma sabedoria muito profunda sobre a vida. Sobre os ciclos da vida ligados à natureza. Há ensinamentos muito simples, mas essenciais do tipo “não faças ao outro o que não queres que te façam a ti”. Esses ensinamentos através de histórias, de personagens são realmente uma delícia. E foi isso tudo que eu tentei juntar na minha história.

 

Eu sei que nem sempre é fácil despertar a curiosidade das crianças para a Literatura e a História, muito menos quando se trata de História da Literatura. Esta tua obra nasce dessa dificuldade? Isto é, nasce da tua vontade de tornar Gil Vicente mais acessível, mais atrativo?

Sim. Eu estava a escrever uma tese de mestrado sobre o espanhol na obra de Gil Vicente, mas rapidamente percebi que era um tema já demasiado abordado. Enfim, não iria ser original, que iria ser a repetição do que os outros já haviam escrito. Portanto, eu própria estava com aquele sentimento de adolescente, que não é apenas próprio dos adolescentes, que é de ter de fazer algo que não nos motiva. Mas pronto, o dever é o dever e temos de o fazer. Mas de repente surge-me o Parvo. Aquela personagem muito livre, divertida, aquela loucura muito sensata que vê para além das aparências. E deixei-me levar, digamos assim, pelo Parvo e imaginei como seria divertido fazer uma viagem ao mundo vicentino de uma forma mais livre, através dos olhos de uma adolescente, a Alice. Porquê uma adolescente? Porque acho que têm uma olhar mais espontâneo. Mas também os adultos se podem deixar levar pela mão da Alice. Tal como ela descobre este mundo, estas personagens e a Lisboa e o Portugal do século XVI, nós também vamos com ela e vamos ficando curiosos e ansiosos porque ela pensa que se calhar morreu. E eu quando escrevi também não sabia se ela iria voltar à vida ou não. E não vamos revelar o final…! Bem, eu sou professora e sei o quanto é difícil para os adolescentes se interessarem pela Literatura, mas, por outro lado, eu também tenho a sensação de que se houver uma boa história que os cative, eles deixam-se levar. Não é por acaso que o Harry Potter foi um grande sucesso. Portanto, foi esta minha vontade de criar uma história muita forte, uma intriga muito boa que os pudesse agarrar, a eles e a todos, e a mim que também me agarrou. Foi esta intriga de imaginar uma adolescente que talvez já tivesse morrido… como é que ela regressa e como é que ela pode encontrar Gil Vicente para poder regressar.

 

Como professora de português no estrangeiro, notas ou não um aumento do interesse dos jovens lusodescendentes pela língua e cultura portuguesas?

Eu, sinceramente, não noto que tenha havido assim uma evolução muito positiva. Não estou a dizer que ela seja negativa. Há dois grupos. Há aqueles que de facto se interessam e, mesmo que seja difícil, vão mantendo a ligação a Portugal. E, depois, há os que se afastam… mas eu penso que isso é válido para qualquer país, não só na Suíça. Eles sabem que Portugal, e é uma das motivações que os leva a querer estudar até ao 12º ano, atualmente, em termos económicas, está a melhorar ou está, pelo menos, mais atrativo, até para os estrangeiros. E isso faz com que eles olhem para o seu próprio país de uma forma mais positiva e como mais uma possibilidade de crescer.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Gilberto Pinto, autor de “A rapariga que veio do frio”

Quarta-feira, 08 de maio, 9h30

Domingo, 12 de maio, 14h25

 

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