Nuno Gomes Garcia conversa com Cristina Isabel de Melo: “Em Portugal, os incêndios vão continuar”

Cristina Isabel de Melo nasceu no Barreiro e é poetisa, tradutora e diretora editorial da Éditions Vagamundo, uma editora independente sedeada na Bretanha, região para onde foi viver, na pequena cidade de Pont Aven, depois de passar 30 anos em Paris.

Na “Le cri des flammes”, a mais recente publicação da chancela, são os seus poemas que dão voz às belas fotografias de Pedro Costa Gomes, fotógrafo português que vive no Cairo, onde trabalha para várias agências noticiosas internacionais. Este livro bilingue, à venda nas livrarias de França, Bélgica e Luxemburgo, foi publicado em solidariedade para com as vítimas dos incêndios em Portugal, mas também para com os bombeiros portugueses.

Prefaciado pelo cineasta Marc Weymuller e pelo engenheiro Max Roche, “Le cri des flammes” retrata as consequências dos fogos florestais de outubro de 2017 que devastaram florestas, aldeias e vidas portuguesas.

“Agora também”, citando as palavras de Cristina Isabel de Melo, “o horizonte é preto e as casas já não têm telhado”.

 

Cristina, a nostalgia, mas também a esperança, presentes nos teus poemas complementam na perfeição as fotografias. Foi a poesia o teu “grito” perante a destruição que constataste no terreno? Que emoções te causaram todas aquelas imagens? Imagino que tenha sido muito duro.

Foi muito duro. Para mim e para muitos outros emigrantes, Portugal significa beleza, um país bonito, de sol e pessoas calorosas, cheio de verde, campos, florestas, de vida camponesa. E de repente, eu cheguei a Portugal de férias e vi aquele horror. Pensei muito na pequena aldeia onde também cresci.

 

E que aldeia é?

Pindo de Baixo. Fica em Penalva do Castelo, perto de Viseu. Lembrei-me então da vida de camponesa da minha avó. Fiquei mesmo muito triste. Pareceu-me que tinha tudo desaparecido de repente. Eu sou daquela região, embora tenha nascido no Barreiro, mas a minha família é toda dali. Aquilo comoveu-me. Eu estou a viver em França há muito tempo, Portugal é sempre aquele lugar, aquele tempo, onde reencontro as minhas raízes. Foi como se o meu Portugal tivesse desaparecido. Foi assim que eu vivi as coisas.

 

As fotografias do Pedro, que são, tinham de ser, na verdade, cruas e cinzentas, surgiram antes da ideia para fazer um livro ou são a consequência da ideia? E como é que surgiu essa ideia?

Apareceu primeiro a ideia. Quando descobri Portugal assim naquele estado, eu pensei: “temos de fazer alguma coisa, nós Portugueses que estamos em França”. Nós, julgo eu, vivemos melhor do que algumas pessoas que estão em Portugal, onde se criou uma grande onda de solidariedade. Convinha também que os Portugueses a viver fora de Portugal ampliassem essa onda de solidariedade. Através dos media, nós vimos muitas chamas na altura do fogo, do incêndio, mas ninguém mostrou o depois. Eu queria mostrar a crueldade, a crueza, de como ficaram as paisagens, mas também as vidas das pessoas nos dias e nas semanas que se seguiram aos fogos. Há pouco tempo foi emitida uma reportagem na France Culture onde pessoas testemunharam o que viveram. Foi terrível ouvir as suas experiências. Muito duro. Parece que as pessoas que não sentiram aquilo na pele já se esqueceram todas do que aconteceu. Agora, claro que basta haver outra vez os incêndios e vão logo todos novamente falar como se já não tivesse acontecido antes. Percebes? Portugal está na moda e toda a gente pensa que lá é tudo um mar de rosas, que é tudo muito bonito, que é fado, futebol, que é sol, férias… Mas não. As vítimas ainda continuam com problemas, muitas ainda não têm alojamento. Em Portugal, os incêndios vão continuar.

 

Sim, é inevitável. Apesar de no ano passado o número de incêndios ter sido muito menor.

Eu sempre conheci incêndios na nossa zona, desde pequena, mas incêndios menores. Agora, são cada vez mais importantes.

 

Claro. Fenómenos como o despovoamento do interior, as alterações climáticas, o aquecimento global… a problemática dos fogos em Portugal tende a agravar-se. Mas explica-nos como é que funciona o mecanismo de solidariedade para com os Bombeiros portugueses?

A Cruz Vermelha Portuguesa recebeu o prémio dos Direitos Humanos em 2017 graças ao papel preponderante que desempenhou durante os incêndios. É muito importante apoiarmos a Cruz Vermelha. Tal como é muito importante apoiarmos os Bombeiros portugueses que foram exemplares no apoio às vítimas. Então, por cada livro vendido é atribuído um euro à Liga dos Bombeiros Portugueses e um euro à Cruz Vermelha Portuguesa. O nosso objetivo é o de sensibilizar a população francesa e dos países francófonos, além, claro, o de ajudar as vítimas, a Cruz Vermelha e os Bombeiros para que estes últimos possam aceder a mais meios. Portugal continua com poucos meios.

 

Falemos um pouco do teu trabalho como editora e tradutora. A associação “Vagamundo” foi fundada em 2009 com o objetivo de fomentar um intercâmbio literário entre a França e Portugal. Como é que este teu projeto foi recebido pelos meios culturais franceses?

Foi muito bem recebido e apoiado pelos meios culturais franceses. Já do lado português… não, esse apoio não chegou. Quer dizer, Portugal apoiou financeiramente algumas traduções. Eu estou na Bretanha e estou bastante triste ao perceber que a Comunidade portuguesa em França liga pouco à Literatura. Noto isso. Por exemplo, um livro que eu traduzi, de Isabel Mateus, sobre a emigração portuguesa. “Maria, Manuel et les autres”… Claro, nós temos o LusoJornal, a Rádio Alfa, temos meios de divulgação da nossa cultura em França, não é essa a questão. A questão é: eu tenho a impressão de que os Portugueses não ligam. Em termos de vendas ninguém se interessa pelas publicações que tenho feito, a não ser, claro, os Franceses. E isso é estranho. Eu tenho a impressão de que os Portugueses de França são diferentes dos que vivem em Portugal.

 

Eu vivo em França há relativamente pouco tempo e passei a maior parte da minha vida em Portugal, mas já ouvi falar sobre aqueles estereótipos, embora nunca os tenha sentido, que refletem um certo sentimento de superioridade da parte dos Franceses em relação a Portugal e aos Portugueses. Esses clichés ainda existem ou estão a desaparecer?

Estão a desaparecer, claro. Eu ouço muito a France Culture e eles falam muitas vezes, e bem, sobre Portugal, os Portugueses e a cultura portuguesa. Acho que esse cliché está a desaparecer. Portugal está na moda. Os Franceses gostam muito da cultura portuguesa, da cultura lusófona. Isso não é um problema aqui em França. Por outro lado, tenho a impressão de que em Portugal não se divulga muito a cultura francesa.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: João de Melo, autor de “As coisas da alma e outras histórias em conto”

Quarta-feira, 06 de março, 9h30

Domingo, 10 de março, 14h25