Nuno Gomes Garcia conversa com Fernando Rosas: “Os populismos cavalgam o descontentamento”

É graças à Les Éditions Sociales e à excelente tradução de Clara Domingues que chegou às livrarias francesas uma obra de referência sobre o Estado Novo salazarista: “L’art de durer, le fascisme au Portugal” do historiador Fernando Rosas.

Neste livro publicado em Portugal há oito anos com o título “Salazar e o Poder. A arte de saber durar”, Fernando Rosas, num estilo solto e profundamente acessível, oferece aos seus leitores uma abordagem limpa e honesta sobre o fascismo português, explicando os fatores que conduziram à sua grande longevidade de 1926 até 1974, quando quase todas as experiências fascistas europeias terminaram em 1945.

Ora este livro surge numa época em que, sinal dos tempos em que vivemos, se começa a debater em Portugal algo que até há poucos anos ninguém tinha a coragem de pôr em causa. Hoje, alguns historiadores e opinadores que invadiram os meios mediáticos recusam-se a identificar o Estado Novo com o Fascismo. Nestes últimos tempos, portanto, a figura de Salazar tem sido branqueada, passando de fascista feroz, amigo de Franco e admirador de Mussolini, a gentil patriota e génio das finanças.

Neste livro, Fernando Rosas, pelo contrário, põe os pontos nos iis e enfia o salazarismo na gaveta devida: a mesma gaveta onde estão Franco, Hitler e Mussolini. Mas Fernando Rosas vai mais longe e coloca uma questão fulcral: quais foram então os elementos que permitiram ao salazarismo sobreviver ao fim da guerra provocada pelo nazi-fascismo alemão e pelo fascismo italiano?

 

Fernando, quando eu estudava História nas faculdades portuguesas há vinte e tal anos era raro ver alguém vir a público defender que Salazar afinal não tinha sido fascista. O que é que mudou entretanto?

Na própria historiografia internacional houve uma evolução no sentido de considerar que os regimes fascistas eram tão especiais e tão raros que, a partir de certa altura, nas historiografias europeia e norte-americana, o verdadeiro fascismo era apenas o italiano, e, mesmo assim, pouco, ou então, num caso extremo, o nazismo. Sendo até que há pessoas que entendem que o nazismo é uma espécie particular, distinto do fascismo. Necessariamente, portanto, o Estado Novo pertencia a uma espécie de “ditadura branda”, dirigida por um “catedrático”, uma coisa muito branqueada, suavizada… Mas isso fazia parte do ambiente inicial da Guerra Fria que isolou no mesmo saco a Alemanha nazi e a União Soviética, que eram os “regimes totalitários” e fora disso havia “ditaduras anticomunistas” que, do ponto de vista da lógica da Guerra Fria, era vantajoso pôr no saco do grande campo anticomunista. Daí partiu uma certa desculpabilização, na realidade um branqueamento do regime salazarista. Mas eu acho que esse critério que esteve na origem dessa divisão durante a Guerra Fria entrou ela própria, como elemento explicativo, em crise. O que se percebe é que os regimes fascistas não são todos iguais. Nenhum movimento fascista, nenhum regime fascista do mundo tomou o poder só por si. Sempre foi um sistema de alianças entre o fascismo movimento e um setor das classes dominantes, das direitas conservadoras, que elas próprias, no ambiente dos anos 1920 e 1930, se “fascistizam”. Ou seja, essas classes dominantes e as direitas conservadoras olham para as experiências fascistas como experiências vantajosas, como uma maneira vantajosa de responder às crises económica e social que varriam uma boa parte da Europa de entre as duas grandes guerras. Crises muito sentidas nos países periféricos europeus. Nesse sentido, o fascismo tornou-se popular entre as classes possidentes, tornou-se vantajoso e há então uma espécie de aliança entre os movimentos fascistas e uma parte das classes conservadoras, da direita tradicional, incluindo a direita liberal, que se “fascistiza”. É dessa união que surgem os regimes fascistas. Já o regime salazarista é uma modalidade dessa aliança, no entanto com um grande peso da direita conservadora, muito mais do que em outras experiências. Digamos que é uma modalidade de um fascismo conservador. Como aliás o franquismo também o foi, sobretudo a partir do fim da guerra civil espanhola que decorreu entre 1936/39. Foram fascismos conservadores mas regimes de violência, antidemocráticos, de partido único, de apetência totalitária…

 

E é isso que pretende demonstrar neste livro?

Sim. Pretendo demonstrar o que é que foi isso da “arte de saber durar” que, para o Salazar, era a arte suprema do Mussolini, e como é que ele a geriu pelo menos desde 1933, data da institucionalização do Estado Novo com a aprovação da constituição, até 1974. Metade do século XX português passou-se numa ditadura de tipo fascista, que foi o regime salazarista.

 

Fernando, vamos falar um pouco deste tempo em que vivemos. Há quem diga que a Grande Recessão de 2008/2015 provocou o reaparecimento de certos fenómenos, ideologias, se preferir, que muitos julgavam já enterradas. Existem, na sua opinião, elementos fascizantes naquilo a que se convencionou chamar “democracias iliberais”? Existem em Trump, Putin, Órban ou Bolsonaro pulsões fascizantes?

Na minha opinião existem. As realidades políticas da Hungria, da Polónia, ou os movimentos políticos que existem na Alemanha, na Eslováquia, na Croácia, ou os regimes como o da Índia, das Filipinas, da Rússia, da Turquia… Todos estes exemplos contêm elementos que alguns historiadores chamam “pós-fascistas”. Ou seja, são realidades diferentes do fascismo do ponto de vista da sua concretização atual, mas têm claramente elementos do fascismo. Esse perigo existe. A transição do século XX para o século XXI, a grande globalização capitalista e o desastre social em que ela consistiu, o desemprego, as falências, a subversão dos Estados Sociais que existiam, criou, sobretudo nas classes intermédias e em certos setores das classes mais pobres, uma grande insegurança, uma grande incerteza, medo. Medo em relação ao futuro, medo da perda de estatuto. Esse medo, pelo facto de os próprios partidos do centro tradicional se demitirem de responder a essas questões e pelo facto, até, de eles próprios se terem transformado em agentes de difusão do neoliberalismo, fez com que essas pessoas se sentissem abandonadas, órfãs de representação, órfãs na defesa dos seus interesses. E estes novos elementos populistas cavalgam, demagogicamente, tal como nos anos 1930, esse descontentamento, essa zanga, esse medo, esse pessimismo sobre o futuro. Os populismos cavalgam o descontentamento de maneira diferente. Em França, por exemplo, temos um Rassemblement National estatista e protecionista, mas já o Vox em Espanha ou o Chega em Portugal, que chegou nestas últimas eleições, como sabe, ao parlamento com um deputado, são ultraliberais, embora partidários do reforço da autoridade do Estado. São ultraliberais ao ponto de o Chega em Portugal defender que se deveria dissolver o Ministério da Educação e acabar com o Serviço Nacional de Saúde para que o “mercado”, por si só, resolvesse todos os problemas. Estes movimentos ainda são diversos, até na maneira como se apresentam, mas são movimentos que vêm do neofascismo, compostos por muitos neofascistas que se engravataram, passaram a querer agir dentro do sistema, passaram a concorrer a eleições. E cavalgando esse lastro de descontentamento, de medo, causados pelos efeitos da globalização, vão tendo algum sucesso. Tudo isso permite-nos estabelecer paralelos entre a nossa época e a situação que viveu no período entre as duas grandes guerras e sobretudo no rescaldo da Grande depressão de 1929.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: João Morgado autor de “Vera Cruz”

Quarta-feira, 26 de fevereiro, 9h30

Domingo, 01 de março, 14h25

 

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