Nuno Gomes Garcia conversa com Francisco Carvalho: “Posturas maniqueístas existem em todo o lado”

Francisco Carvalho é advogado e viveu em Hamburgo entre 2017 e 2018, inspirando-se nessa estadia nas margens do Elba para escrever o seu primeiro romance. “Os Crimes de Hamburgo” é um policial passado nessa cidade portuária do norte da Alemanha pouco depois do país ter aberto as portas a um milhão de refugiados, essencialmente fugidos das guerras que vão destruindo esse berço da civilização que é o Próximo Oriente.

Neste romance, passado apenas um ano desde a chegada dos refugiados, espoleta-se em Hamburgo uma cadeia de reações racistas e xenófobas que deixam a cidade em alerta máximo. O pior acaba por acontecer e um assassino em série começa a matar refugiados. Serão cinco assassinatos no total. Esses homicídios são investigados pela polícia, ao mesmo tempo que se tenta desarmar a preparação de um atentado islamita, mas também por Luís, um jornalista português que atravessa uma crise existencial, e por Elise, uma jornalista alemã que trabalha para uma agência sensacionalista dirigida por um milionário sem escrúpulos que se serve deste mundo de pós-verdade e ‘fake news’ para manipular e incendiar a população.

Um romance livre de maniqueísmos que aproveita o cinzentismo invernal tão típico de Hamburgo para nos fazer o retrato de uma sociedade já em crise e que se vê abalroada pela súbita e maciça chegada de refugiados que se tornam vítimas de uma xenofobia crescente. Uma sociedade complexa, dividida entre o dever moral de acolher quem tenta sobreviver e o ódio pelo Outro, uma aversão irracional que contamina certas franjas (cada vez menos minoritária, na verdade) das sociedades europeias que se deixam assim mergulhar no veneno ideológico da extrema-direita. Um livro que se lê de um trago e que não deixará ninguém indiferente.

 

Francisco, é impossível ler este romance e não pensar no fenómeno que se vem desenrolando em frente dos nossos olhos nos últimos anos. Por um lado, a chamada crise dos refugiados, e por outro, a importância cada vez maior dos média populistas e o crescimento dos movimentos xenófobos. Naquele ano e pico que viveu em Hamburgo, viu claramente essa tensão a olho nu ou é algo de mais subterrâneo?

Eu diria que nos locais onde me mexi não se notava. Agora, lendo os jornais, verificamos que está presente na comunicação social. Na vida da cidade existem áreas onde não se percebe e existem outras onde se percebe a presença de pessoas com origem desses países muçulmanos. E sabe-se que existe tensão, que existem vários movimentos de todos os lados. Essas posturas maniqueístas existem em todo o lado. Existe uma esquerda muito radical e uma direita muito radical. Todas essas posições existem, estão lá e vão-se extremando. Mas não é nada de asfixiante. Uma pessoa vai a Hamburgo e vive-se lá otimamente. Não se ouve falar de Hamburgo aquilo que se ouve falar de Paris, não tem nada que ver. Existe lá maior harmonia.

 

Também é uma cidade mais pequena.

Sim, mas mesmo assim é a segunda maior cidade da Alemanha.

 

Não fazia ideia. Pensei que fosse Munique.

Sim, a maior parte das pessoas pensa isso. Quer dizer, Hamburgo e Munique competem pelo segundo lugar, mas neste momento Hamburgo é a segunda. Falou-se nisso quando foram os distúrbios durante o G20. Hamburgo parece uma cidade média, mesmo quando se está lá.

 

Sim, apesar dos quase dois milhões de habitantes, Hamburgo possui uma escala humana.

Muito, muito.

 

Francisco, o personagem que eu acho mais impressionante é o Andreas Schultz, um magnata misógino, claramente, populista e islamofóbico. Ele criou um sítio na internet com toda a informação necessária para fomentar uma perseguição bem orientada contra os muçulmanos. Ora, esse tipo de instrumento quase que nos conduz para o mundo das distopias. Existe algo na nossa realidade que o tenha inspirado na construção desse personagem?

Para lhe dizer a verdade foi pura inspiração. Não tive modelo nenhum. O projeto veio antes do personagem. Quando eu comecei a escrever sobre esse personagem, a sua relação com a Elise, eu não fazia a mínima ideia do que vinha aí.

 

Foi surgindo, como acontece quase sempre.

Sim, foi surgindo.

 

Mas acha possível que esse tipo de instrumento venha a aparecer?

Completamente. Já existem, possivelmente em estágio mais embrionário, coisas destas, talvez com outros propósitos. Este servia para descobrir as redes islâmicas, para as pessoas perceberem onde param os terroristas e, com isto, claro, criar uma perseguição. Uma coisa destas, a existir, é perigosíssimo. Este cruzamento de informação, tendenciosamente orientada, está a acontecer em todo o lado. Para levar isto a efeito basta vontade e dinheiro.

 

Que é o caso do Andreas Schultz. Bem, este Schultz é claramente o vilão e contrasta com o personagem do português, o Luís, um jornalista que tenta encontrar o assassino de um casal de refugiados que viviam em Portugal… bem, não vou mais longe senão estrago a leitura toda. Pode dizer-se que o Andreas representa o Mal e o Luís representa o Bem? Ou estou para aqui a inventar uma dicotomia demasiado simplista…

Não me parece simplista, parece-me uma perspetiva, mas não diria ser essa a única perspetiva. No outro dia, a minha mãe disse-me exatamente isso que o Nuno acaba de dizer. Eu conheço outras pessoas que elogiaram o Andreas Schultz.

 

Claro o Andreas Schultz está muitíssimo bem construído…

Não, não, elogiaram-no como…

 

Como uma boa pessoa?

Sim, eu conheço pessoas de várias filiações. O Andreas Schultz não é bom, de maneira nenhuma, mas está convencido da bondade daquilo, do seu projeto político. Acaba por ser um vilão para muitas pessoas, e percebe-se porquê. E existem pessoas que consideram o contrário. E eu achei isso engraçado.

 

Não li o livro nessa perspetiva.

Agora em relação ao Luís. Ele parece-me mais um homem perdido, a tentar fazer alguma coisa boa do que propriamente um homem bom. Embora o plano que ele tem suscite dúvidas, não se sabe se é bom. A verdade é que cada leitor acha sempre coisas diferentes.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado:

Quarta-feira, 10 de outubro, 9h30

Domingo, 14 de outubro, 14h25

 

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