Nuno Gomes Garcia conversa com São Gonçalves: “Encontrei na literatura muitas respostas a muitas dúvidas”

“Correr Mundo” é o título de uma coletânea de contos inteiramente feminina lançada pouco antes do confinamento, no passado Dia Internacional dos Direitos da Mulher, e que sucede a “Contos da Emigração: Homens que sofrem de sonhos”, obra igualmente publicada pela Editora Oxalá há dois anos e que chegou à segunda edição.

O editor Mário Santos apostou então em dez autoras residentes fora de Portugal de maneira a que as histórias contadas garantam a autenticidade de quem efetivamente sente na pele a condição de emigrante. Uma visão feminina, portuguesa, mas também transcontinental, pois as autoras vivem em países tão distintos como o Canadá e o Luxemburgo.

E é neste último país que reside São Gonçalves, uma das participantes em “Correr Mundo” com o conto “A força do desapego”: o retrato de uma mulher de pouco mais de cinquenta anos, Clara, que utilizou a literatura como uma arma para ultrapassar um certo “olhar para dentro” da Comunidade portuguesa e se abrir ao mundo.

 

São, uma das personagens do teu conto, a Clara, conta a sua história, dizendo que chegou ao Luxemburgo aos 25 anos e que esse país era a “promessa de um novo recomeço”. Refere também que, apesar de viver num país diferente, deu por ela a mergulhar na Comunidade portuguesa aí residente, homens e mulheres “rudes” vindos do “Portugal profundo”. Como é que é hoje? O Luxemburgo ainda é um eldorado e o “Portugal profundo” ainda existe?

A Clara personifica as mulheres e ela chegou ao Luxemburgo em 1994. A evolução que ocorreu a partir daí na Comunidade portuguesa, a alteração das suas características sociais, foi grande, também por causa da comunidade europeia, das instituições europeias, da vinda de professores. Esse lado que a Clara encontrou é agora menos visível. O que a Clara tenta dizer é que quando uma mulher chega sozinha, neste caso ao Luxemburgo, os trabalhos que encontra é em cafés ou nas limpezas. E esse foi o caso dela que foi ter a um café de Portugueses onde quem o frequentava eram os homens da construção civil. Essa era uma realidade muito visível nessa altura e penso que hoje já não será tanto, ainda haverá uns nichos, mas não é tão marcado.

 

E o Luxemburgo ainda é um eldorado? A ver pelo preço das casas e dos apartamentos parece que não.

Isso é inatingível. Com um salário mínimo não se consegue arrendar uma casa. O Luxemburgo já não é um eldorado. Há trabalho, sim, e tenho a ideia que ainda chega muita gente de Portugal e de outros países para cá, mas a qualidade de vida já não é tão boa como há uns anos devido exatamente ao preço das casas.

 

São, a certa altura no teu conto escreves, a Clara di-lo, que a emigração nos dá uma “visão diferente da vida”.

Sem dúvida nenhuma.

 

Que tipo de “visão” nos dá, então, a nós todos, emigrantes?

Nós somos confrontados com uma outra sociedade, uma outra cultura, isso, só por si, faz-nos crescer imenso como pessoas. O facto de sairmos de um país para outro faz-nos aprender muito com a vida e aprendemos também essa coisa da alteridade, da aceitação do Outro. Porque, se quisermos estar bem com o Outro, para que ele nos aceite, nós também temos de aceitar as suas diferenças. Essas movimentações migratórias têm essa riqueza enorme.

 

A empatia cria-se mais facilmente quando conhecemos o Outro.

Sim, e quando o aceitamos na sua diversidade. Se não houver uma troca de emoções e de afinidades é muito complicado, não há crescimento possível.

 

Falemos do livro. Eu não digo se estou de acordo ou não, mas há quem firme que o mundo da literatura ainda é um mundo demasiado masculino, daí a pertinência deste tipo de coletâneas 100% femininas. Concordas?

Eu acho que não. Conheço imensas mulheres que escrevem. Também conheces as escritoras de sucesso em Portugal, a Ana Margarida de Carvalho, a Ana Cristina Silva, que fez o prefácio para este livro, a Isabel Rio Novo, isto para falar apenas nestas escritoras contemporâneas, mas sem esquecer as grandes autoras como a Agustina… Há imensa literatura no feminino.

 

Então, levando isso em consideração, não julgas que este tipo de abordagem abertamente 100% qualquer coisa, sei lá, só feminino, ou só europeu, ou só africano, pode ter um efeito contraproducente e ser mais divisiva do que inclusiva?

É temático. Pode fazer-se a mesma coletânea no masculino.

 

Isso ia dar uma confusão.

A coletânea anterior havia mulheres e homens a escrever.

 

Cinco homens e cinco mulheres se não me engano. Eu participei nessa coletânea com um conto.

Sim, eu lembro-me desse conto com os frutos e os vegetais, uma história de uma família bem interessante e bem real. Mas voltando à pergunta, eu julgo ser temático. A um dado momento as editoras também têm necessidade de tematizar estas questões e não creio que possa dividir.

 

Voltemos então à Clara. Ela vê na literatura um instrumento de crescimento e simultaneamente de se manter ligada a Portugal e à língua portuguesa. Acontece o mesmo contigo?

Sem dúvida nenhuma. Para mim, a São Gonçalves, os livros foram sempre o sustento para algum equilíbrio nesta minha experiência de emigração. Eu encontrei na literatura muitas respostas a muitas dúvidas. Aliás, voltando ao conto, a Clara, a dada altura, está a ler o livro de Mia Couto que fala realmente desse regresso às raízes e da sua aceitação e da família. Eu não sei se muita gente que emigra tem, a um dado momento, necessidade de se desligar das raízes, de se afastar. O verdadeiro encontro consigo próprio é na aceitação dessas raízes e da cultura, de tudo isso que nos faz gente. É como uma árvore. Se não tiver raízes também não tenho tronco e folhas. A literatura, sim, liga-me à língua portuguesa e ao modo de ser português.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Joana Pinheiro de Almeida, autor de “Catherine de Bragance”

Quarta-feira, 8 de julho, 9h30

Domingo, 12 de julho, 14h25

 

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