Nuno Gomes Garcia conversa com… Dominique Stoenesco: “O índio tornou-se um estrangeiro na própria terra”

Dominique Stoenesco traduziu, entre muitos outros, o romance “O meu querido canibal”, do escritor baiano Antônio Torres, vencedor do Prémio Jabuti e do Prémio Machado de Assis, os dois maiores prémios literários brasileiros.

A edição francesa deste livro foi publicada pela Éditions Petra, em 2015, com o título de “Mon cher cannibale”.

Este “O meu querido canibal” conta a história do chefe indígena Cunhambebe, um índio tupinambá que, dizem as fontes, era homem para ter dois metros de altura, possuir 14 mulheres e comer 60 portugueses… e que, em meados do século XVI, se aliou aos franceses para combater a colonização portuguesa do atual estado do Rio de Janeiro.

Essa guerra, conhecida como a Revolta dos Tamoios, terminou com um armistício que, em última análise, conduziu à expulsão dos franceses do Brasil e ao quase extermínio dos povos ameríndios da região, tornando inevitável a construção do gigantesco Brasil de raiz portuguesa que conhecemos hoje.

 

Ao ler este livro, nota-se imediatamente a diversidade de formas narrativas. “O meu querido canibal” não é um romance, mas também não é um livro de crónicas, nem um ensaio historiográfico. Estamos em presença de que género de obra?

Tens razão, é um romance hibrido, no qual entra ficção, História, narrativa e há vários níveis de linguagem, um pouco de crónica, relatos, poesia, letras de canções e até publicidade.

 

Sim, o Antônio Torres foi publicitário…

Exatamente. É um discurso que se opõe ao discurso historicista, eurocêntrico. É portanto um texto entre a realidade e a literatura. Ele próprio diz, o Antônio Torres, “o meu livro é uma canibalização da História e da literatura. É a antropofagia do modernismo brasileiro”.

 

Este livro, na verdade, é quase pós-moderno…

Sim, é uma transição entre a geração Jorge Amado e a nova cartografia literária do Brasil.

 

Este livro convida o leitor, que está acostumado a uma visão etnocêntrica, europeia da colonização do Brasil, a adotar a perspetiva do índio. Ou seja, há um trabalho de empatia que força o leitor não-índio a vestir a pele do índio. Consideras que livros como este, que tratam a alteridade, ajudam os vários povos que falam português a ultrapassar os persistentes fantasmas da escravatura e da colonização que tanto se fazem sentir ainda hoje?

Colocas muito bem a questão. Antônio Torres opõe-se a esta visão etnocêntrica que considera que antes da chegada dos europeus os índios eram seres “sem fé, sem lei e sem rei”. Este livro, finalmente, é sobre o índio que se tornou um estrangeiro na própria terra…

 

Os índios que não sabiam que eram índios. Ainda não sabiam que o Colombo, que confundiu Cuba com a Índia, coitado, e que morreu a sonhar com Calecute, os batizara com esse nome.

Sim, repara que a ação se passa no primeiro século da colonização portuguesa do Brasil, no século XVI. Isto é, tudo ainda está em debate. E Antônio Torres lança uma questão para o meio desse debate: “qual o lugar do índio nesta nação brasileira?”. E o tom do Antônio Torres é provocador, com muita ironia. É preciso atenção quando lemos o texto dele, devemos compreender a provocação.

 

Isso faz todo o sentido. Nos nossos dias, esse processo de desenraizamento do índio, que começou em 1500, prossegue. Os territórios amazónicos que pertencem há milhares de anos aos povos indígenas são-lhes arrancados para que os fazendeiros possam fazer crescer pasto ou soja. Não podemos esquecer que ainda existem tribos isoladas, de caçadores-recolectores, sem qualquer contacto com o dito “mundo moderno”. Ao mesmo tempo que se destrói a floresta, claro.

Era o que estava a dizer: “qual é o lugar do índio nesta nação brasileira?”. O Antônio Torres revisita o passado e aponta o estado atual das comunidades indígenas, a violência que continua a ser exercida sobre elas. Aliás, o Cunhambebe é o símbolo da resistência índia. É, no fundo, o primeiro herói brasileiro. É essa História oficial do Brasil que este livro revisita. Porque até agora, 99% dos livros oficiais contam aquela História fabricada em que o colonizador descobre, leva a civilização…

 

Não se fala tanto quanto de deve do genocídio perpetrado pelos Europeus.

Sim, é por isso mesmo que o Antônio Torres escreveu sobre o ponto de vista dos vencidos, dos índios exterminados. Podemos dizer que “O meu querido canibal” é uma espécie de Anti-História.

 

Falemos dos vencedores, então. Ora, neste livro, António Torres traça um retrato simpático dos colonizadores franceses e, pelo contrário, pinta uma imagem cruel dos colonizadores portugueses. Em que dados históricos é que António Torres fundamenta esta análise?

Primeiro, o Antônio Torres não pretende contar a História do Brasil. Ele não é um historiador. Ele tenta escavacar alguns aspetos desta História oficial. E não esqueçamos, tal qual referiste, que houve violência durante a colonização. Ele pretende opor-se à manipulação da memória. Quando o Antônio Torres confronta os colonizadores portugueses e franceses, ele fá-lo com muita ironia.

 

Sempre a ironia.

Sim, é um elemento marcante. O Antônio Torres até diz que “os Franceses não são bons para a guerra, vieram cá para ver as índias nuas e apanhar banhos de sol e mar”. E é verdade que os Franceses não tinham um plano de ocupação do território. Ao fundarem uma colónia, que durou quatro anos, numa ilha da baía do Rio de Janeiro, eles tinham duas prioridades: fugir às incessantes guerras religiosas na Europa e fazer o comércio do pau-brasil. Em relação à imagem que o Antônio Torres pinta dos Portugueses, repara que ele viveu três anos em Portugal e tornou-se um grande amigo de Portugal e da literatura portuguesa. Foi amigo do Cardoso Pires, do Alexandre O’Neil. Conheceu esta geração. Ele admira muito Pessoa, mas mesmo assim, neste livro, ironiza com o poema “Mar Português”, dizendo “mas, ó pá, valeu a pena. Sim, mas valeu a pena para quem?”.

 

De facto, ao ler “O meu querido canibal” não podemos nunca esquecer a ironia típica da escrita de Antônio Torres.

O Antônio Torres faz o mesmo que um certo jovem escritor chamado Nuno Gomes Garcia também faz nos seus livros, nomeadamente no seu primeiro romance, de que eu gostei muito, “O soldado Sabino” (risos). Em que o canibalismo praticado pelo Sabino, um soldado português na Flandres, serve como denúncia da guerra.

 

Estás a fugir ao tema, mas dizem que esse eternamente jovem autor tem futuro…

Isto para dizer que existem escritores que não podem ser lidos no primeiro plano. O Fernando Pessoa fala das lágrimas e do sangue derramados pelo conquistador português. Mas o Antônio Torres recoloca a pergunta: “lágrimas e sangue de quem? Quem são as vítimas?”.O Antônio Torres é um autor provocador e deve ser lido como tal. Como o Eça de Queirós, por exemplo.

 

Também é para isso que serve a arte, no geral, e a literatura, no particular. Para provocar, para questionar, para reconstruir as “verdades” mentirosas.

Isso mesmo.

 

Dominique, como tradutor que és, na tua opinião, qual o lugar que ocupa a literatura lusófona no mercado francês?

É um lugar reduzido. Nós, lusófonos, sentimo-nos felizes quando um livro é traduzido e publicado em França. Mas temos de perceber a realidade. No mercado livreiro francês, ao lado das literaturas anglo-saxónicas, os autores traduzidos da língua portuguesa equivalem a menos de 1%. Ainda há muito trabalho a fazer. Mas temos de salientar que tanto Portugal como o Brasil, sobretudo o Brasil, atribuem bolsas de apoio à tradução e há uma política bastante concreta nesse sentido.

 

Para terminar, peço-te então que nos aconselhes um livro. Pode ser o que estás a ler neste momento.

Um dos últimos livros que li, e de que gostei muito, é “O tímido e as mulheres” do angolano Pepetela. O tímido é um jovem escritor que quer escrever um livro e que ouve uma emissão radiofónica feita por uma senhora muito bonita, de voz quente, e ele apaixona-se pela voz dela. Olha, estão aqui todos os ingredientes, incluindo o fervilhar de Luanda.

 

 

Entrevista realizado no quadro do programa “O livro da semana” na rádio Alfa

Próxima convidada:

Cristina Drios, autora de «Os olhos de tiresias»

Quarta-feira, 24 de janeiro, 8h30

Domingo, 28 de janeiro, 14h25