LusoJornal / Mário Cantarinha

O 25 de Abril do sociólogo Albano Cordeiro

Mas o que é que a Revolução mudou no Estado e na Sociedade civil?

25 Abril 74: O Golpe de Estado que virou Revolução

 

Qual foi o contexto no qual teve lugar o Golpe de Estado?

O regime que governava o país há cerca de meio século, conseguiu a proeza de governar um povo que, maioritariamente, era despolitizado (“Oh, amigo, não me fale de política! Fale-me de futebol!” fazia dizer o caricaturista Vilhena numa vinheta). O debate político autorizado limitava-se, para um número reduzido de cidadãos, a emitir “opiniões” compatíveis com a ação do Governo.

Os Portugueses eram, na altura (sobretudo nos anos 50) o povo mais despolitizado da Europa. Certamente havia uma resistência que não desmerecia apreço, e uma atividade cultural crítica que entretinha uma modernização das ideologias correntes em vários setores.

Para obter estes “sucessos” de despolitização, o regime serviu-se de uma forma (banal) de terrorismo de Estado, lançando nos anos 30 uma Polícia política (que se chamará PIDE, Polícia Internacional de Defesa do Estado), a fim de reprimir o movimento sindical, de origem anarquista e comunista. O movimento anarquista foi o mais atingido, enquanto o movimento comunista, graças à sua prática da clandestinidade, sobreviveu.

Face a este fator que agia no sentido da preservação a longo prazo do Regime, outros fatores agiram no sentido de uma mudança de sistema político em Portugal. Se bem que o fator Guerra colonial (começada em 1961), tivesse desempenhado um papel de primeiro plano no amadurecimento das condições para uma mudança de Regime, podemos alinhar o impacto do movimento estudantil dos anos 60 na tomada de consciência quanto à natureza do Regime. A geração nascida nos anos 40 não só é mais instruída que as gerações precedentes, como teve a ocasião de ser testemunha da campanha eleitoral do General Humberto Delgado (1958), que foi para muitos jovens a descoberta de formas de luta política, investidas posteriormente num quadro universitário.

A partir da segunda metade dos anos 50, com a aparição de ameaças sobre as possessões portuguesas na Índia, com a revolta dos Mau-Mau no Quénia (anos 50) e as outras lutas pela libertação da África negra e da África do Norte dos anos 50-60, o Governo português começou a destilar um discurso oficial cada vez mais nacionalista e cuja lógica final era de transformar em delito toda a tomada de posição contra a Guerra colonial (1).

A Guerra colonial vai realmente “sacudir” a sociedade portuguesa. Tendências e tensões internas que se manifestaram na época precedente, vão jogar um papel de primeiro plano. Assim, nos anos 50, as autoridades militares estimam que seria preciso “abrir” o Colégio Militar a jovens de outras classes sociais que aquelas de onde vinha a maior parte dos candidatos, a fim de preencher postos de comando do Exército, da Marinha e da Aviação que seriam necessários na eventualidade de uma guerra nas possessões portuguesas (2).

Foi num tal contexto que um certo número de jovens da classe média, entre os quais Otelo Saraiva de Carvalho, residente em Lourenço Marques (Maputo), entrou para o Colégio Militar. Por outro lado, o necessário enquadramento das tropas engajadas e recrutas, levou a confiar postos de comando e realização de tarefas estratégicas a oficiais ditos “Milicianos” (não tendo passado pelo Colégio Militar), jovens chamados para a Guerra colonial, em pleno curso universitário.

É neste contexto, no qual muitos oficiais (de nível de Capitão) se sentem mal reconhecidos, que se cria um círculo de Oficiais de “nível menor” com vista a formular um Caderno de reivindicações. E é este círculo que no curso de alguns meses vai politizar-se e passar a chamar-se Movimento das Forças Armadas (MFA). As reportagens vídeo relativas aos primeiros dias mostram que os populares, a gente da rua, aderiram espontaneamente à ação do MFA. Mas é, de facto, a gigantesca manifestação do 1° de Maio seguinte (manifestantes estimados em um milhão) que ilustra melhor a adesão maciça do Povo ao MFA (3) pondo fim a um Regime que servia sobretudo uma elite reduzida e punha a grande parte da população em situações precárias cada vez mais insuportáveis.

 

Quais as diferenças entre o Regime Salazarista-Marcelinista e o Regime Pós-25 de Abril?

O Regime Salazarista-Marcelinista era bem de natureza fascista (4). Este Regime defendia os interesses de uma elite de burguesia agrária e burguesia industrial. Outro aspeto é a sua falta de dinamismo para acompanhar a modernização que se operava no mundo.

No programa do MFA constava a descolonização e a democratização do país. A descolonização – certo inadiável – foi demasiado caótica. A democratização do país, passando durante um ano e meio por períodos de incerteza (5), acabou por institucionalizar com sucesso um regime de democracia representativa. A adesão à União Europeia (1979) consolidou esta evolução.

Como democracia representativa, não se desmarca das outras democracias representativas. Este tipo de democracia assegura a uma oligarquia económico-financeira, nacional e internacional uma continuidade da exploração do trabalho e das riquezas naturais do país. O sistema eleitoral, aberto a todos os cidadãos a intervalos plurianuais, confia o exercício exclusivo da soberania dos cidadãos aos representantes eleitos que – eles – recebem instruções quanto às decisões a tomar no quadro parlamentar. Estes Partidos, pelo menos aqueles que contam, são por sua vez sob a influência de grupos de interesses para os quais o bem-estar geral da população não é o centro das suas preocupações.

Há bem uma diferença qualitativa entre o Regime Salazar-Marcelinista e o Regime que entrou em vigor depois do 25 de Abril 74. Os cidadãos dispõem de liberdades de que não tinham acesso até então. Podem escolher os representantes que lhes parecem “melhores”, se bem que o nível de informação da maior parte deles é insuficiente para uma escolha tomando em conta os seus diversos aspetos. O cidadão está sob influência da ideologia dos media que contam e, por consequência, igualmente sob a influência dos grandes grupos económico-financeiros.

O 25 de Abril de 74 foi um passo avante sobre o plano das liberdades, mas o sistema económico-político é sempre baseado na desigualdade e na injustiça social.

 

Notas:

(1) “Angola é Nossa!”, o slogan mais difundido, subentendia que Angola era território de Portugal, e deixá-la aos revoltosos (apresentados como “pilotados por Moscovo”…) era equiparado a uma tolerância a que nos “roubem” uma parte do território nacional. Se bem que a libertação e a independência de todas as Colónias eram preconizadas pela Comissão de Descolonização das Nações Unidas. A Guerra colonial mobilizou um milhão de soldados e causou a morte de 10.000 deles, assim que 30.000 feridos. (in Portugal Sempre, bimensal franco-português, 1-15 maio 2011, título: “Guerra Colonial: Portugal vai pagar fatura até 2020”). E conviria acrescentar os mortos e feridos do lado dos Africanos.

 

(2) A seleção social dos candidatos ao Colégio Militar resultava da obrigação de adquirir o “enxoval” (fardas, roupa civil, objetos vários,…), cujo custo estava fora das possibilidades de muitas famílias.

 

(3) Nesta manifestação do 1° de Maio, podia-se observar a presença de grupos de populares provenientes de bairros da capital e da periferia. Um destes grupos, de algumas centenas de pessoas que diziam vir dos bairros degradados à volta de Sacavém, gritava um só slogan: “Se isto não é o povo, o povo ond’é que está? Está aqui!!”

 

(4) Salazar foi um dirigente cristão-democrático antes de entrar no Governo como Ministro das Finanças (1928), e admirador de Mussolini desde sempre. À variante portuguesa do seu fascismo era dado o nome de corporativismo.

 

(5) O PREC termina no dia 25 de novembro de 1975. Oficiais e unidades do Exército e da Aviação (Paraquedistas), impacientes pelo não avanço do processo revolucionário, tomaram iniciativas sediciosas a que o Governo em exercício põe fim. A esta ação dos Revolucionários faltou um apoio claro e preciso da parte do Partido Comunista, que durante o PREC tomou frequentemente atitudes reservadas. A razão estaria no facto que o referente número um do PCP era a URSS, que, por questões de equilíbrio mundial da Guerra fria, não estava em posição de sustentar um “país amigo” em plena zona capitalista europeia.

 

Albano Cordeiro

Sociólogo

 

Testemunho recolhido para o LusoJornal, no quadro da Exposição sobre os 40 anos do 25 de Abril, do fotógrafo Mário Cantarinha, publicado na edição em papel do LusoJornal de abril de 2015.

 

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