Lusa / António Pedro Santos

Opinião: Contando o tempo ao contrário

Continuamos a ouvir a rádio que nos traz o som do mundo. Continuamos a ler os livros não lidos ou a reler aqueles de que sempre gostámos mais. Para enganar as horas, continuamos a saltitar entre sites de museus, sites de festivais de cinema, sites de teatros, sites de festivais de música.

Continuamos a sair como fugitivos: esgueiramo-nos pelas ruas vizinhas da nossa casa-refúgio, falamos pouco, evitamos estranhos, agimos como clandestinos.

Continuamos a rodear-nos de gestos-barreira recém-aprendidos. E eu espero com curiosidade ver como será pensada, por uma qualquer nova coreografia, esta realidade das relações humanas: os bailarinos, mantendo entre si uma distância de segurança, não se poderão tocar, os ‘pas-de-deux’ serão transformados em sugestões, em solos, em danças ao espelho…

Continuamos em teletrabalho. Temos intermináveis reuniões que atravessam cidades e fronteiras e onde empurramos os cronogramas das ações para datas provisórias. Mas, ainda assim, continuamos a projetar o futuro como se esse futuro se seguisse a um presente, quando, de facto, o futuro que nos espera se sucede não a um presente, mas a um ausente, a uma ausência de tempo ativo. E, se é verdade que, mesmo no contexto de uma realidade expectável, nunca conseguimos predizer o futuro, agora nem esses dados temos. Sabemos apenas o que o ciclo da Natureza (embora a saibamos agredida e desregulada pela nossa ação planetária) nos reserva ainda: agora, as flores explodem nos canteiros, a relva cresce sem regras em tufos de um verde denso e escuro, as árvores, momentaneamente libertas da disciplina geométrica dos jardineiros franceses, lançam ramos e rebentos em todas as direções; depois, virá o verão, a estiagem, o calor…

Entretanto, deixámos tudo preparado. Tudo, é esse futuro incerto que temos que tomar como certo para conseguirmos aguentar as desmarcações e cancelamentos de espetáculos, de lançamentos, de festivais… Será então tempo de regressarmos às nossas terras? De nos expatriarmos numa praia do sul? Ou esperamos um pouco mais?

E como vão os políticos resolver isto? Como, sem cederem à voragem dos donos do dinheiro e dos seus mecanismos? Há planos governamentais, há fundações e instituições a apoiar artistas e sociedade civil. Mas os critérios serão os corretos? Os mais abrangentes? E se alguns, muitos, dos nossos amigos e dos amigos dos nossos amigos e os outros ainda, quebrarem? Se não conseguirem manter-se? Como vamos viver esse desastre?

E se “Isto” regressar no outono e os cientistas e os criadores artísticos, de quem esperamos sempre mais do que dos políticos (embora, em parte, deles dependam), ainda não tiverem tido tempo para inventar nenhuma vacina eficaz (uma nova vacina para o corpo e múltiplas vacinas para o espírito)?

O que é complicado é acharmos, sinceramente, que não vale a pena pensar nisso nem em qualquer outro cenário de possibilidades, porque tudo está fora do nosso controlo exceto lavarmos as mãos com água e sabão e espirrarmos para a articulação do braço com o antebraço (para o cotovelo, dizem eles…).

E assim vamos gerindo o nosso quotidiano, contando o tempo ao contrário, em vez de contarmos “um dia depois do outro”, contamos “um dia antes do outro”.

No site do Centre culturel portugais à Paris, Camões, continuamos a rever, mês a mês, quatro anos de atividades diretas e apoios à vida cultural lusófona e lusófila, em Paris e em França.

As professoras continuam a dar aulas online aos alunos que dantes recebiam nas salas de aula.

Preparamo-nos para integrar, convertidos em eventos online, dois momentos culturais nos quais a presença humana sempre foi (e seria / e deverá voltar a ser) essencial: a exposição coletiva “Rostos da Europa”, no contexto da comemoração do Dia da Europa, a 8 de maio, e o festival “Nuit de la Litterature”, a 28 do mesmo mês.

E vamos também preparando a Rentrée cultural como se 2020 tivesse sido um ano ao qual pudéssemos ter contado os meses todos.

Boas escolhas culturais e até para a semana.

 

Esta crónica é difundida todas as semanas, à segunda-feira, na rádio Alfa, com difusão antes das 7h00, 9h00, 11h00, 15h00, 17h00 e 19h00.

 

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