Home Cultura Nuno Gomes Garcia conversa com Nuno Camarneiro: “Deus já não dá respostas satisfatórias”Nuno Gomes Garcia·24 Setembro, 2018Cultura Nuno Camarneiro, vencedor do Prémio Leya em 2012 com o romance “Debaixo de Algum Céu”, estudou Engenharia Física em Coimbra, Ciência Aplicada ao Património Cultural em Florença e trabalhou no CERN. O seu primeiro romance – “No meu peito não cabem pássaros” – encontra-se traduzido e publicado em França com o título “Les Hommes n’appartiennent pas ao ciel”. Em abril deste ano, Nuno Camarneiro lançou “O fogo será a tua casa”, o seu quarto romance, todos publicados pela editora D. Quixote. Este novo romance, tal como os anteriores, é um huis clos, passado apenas num cenário que, tal como numa peça de teatro, prende os personagens a um único ambiente. Em “O fogo será a tua casa”, o escritor, neste caso o próprio Nuno Camarneiro, transforma-se num aventureiro que empreende uma viajem, imaginária, pois claro, pelo Próximo-Oriente onde, espera ele, a experiência o levará a compreender melhor a origem e as causas dos conflitos que destroem os países da região. Porém, Nuno e o seu acompanhante, o turco Kerem, acabam sequestrados por um grupo terrorista e são retidos ao longo de semanas em cativeiro, juntamente com mais alguns personagens na mesma situação: Florian, Agnes, Sami, Michel… Personagens que ajudarão o autor a interpretar as complexidades do mundo onde vivemos. Nuno, ao ler este teu livro é impossível não pensar na famosa e sempre muito em voga tese do Samuel Hutington sobre o “choque de civilizações” entre o Ocidente e o Oriente, este, representado, claro, pelo Islão. Consideras esta abordagem pertinente e válida ou, pelo contrário, vê-la como uma simplificação primária de realidades tão diversas e complexas como o mundo ocidental e o mundo islâmico? Bem, na verdade, uma das coisas que me levou a escrever este livro foi ajudar-me a pensar estes conflitos, dos quais, enfim, nós falámos e falamos muito ao longo das últimas décadas, mas que duram há bastantes séculos, sempre de formas diferentes. Acho que é importante não menorizar algumas das questões propostas mesmo por esse “choque de civilizações”, se quisermos, mas também não achar que as dificuldades não podem ser ultrapassadas. A verdade estará algures entre uma e outra leitura. Agora, há diferenças na filosofia associada a cada uma das religiões. Enfim, há formas de ver o mundo, o Outro, a comunidade, tudo isso, que são, de facto, diferentes de acordo com aquilo que poderíamos chamar de matrizes cristã e muçulmana. O que não quer dizer que sejam imutáveis. Uma das coisas a que temos assistido é que o Islão, de várias formas, e em países e épocas diferentes, tem mudado. Com o Wahabismo e o Salafismo voltamos a ter uma espécie de… De retrocesso? Sim, houve um retrocesso em muitos aspetos, pelo menos naquilo que nós consideramos a seta do tempo. Todas essas questões estão expostas no livro, não de forma maniqueísta ou simplista, espero eu. Por outro lado, eu estou a viver uma experiência onde estou nessa situação, imbuído da minha mundivisão, da minha forma de ver o mundo, que é ocidental, obviamente. Estou em confronto, seja físico, seja argumentativo com pessoas que estão a viver o outro lado, e que terão as suas razões, com as quais podemos concordar ou não. A maioria das vezes, nós não concordamos, mas eu acho interessante fazermos o esforço de irmos ao encontro do Outro e ouvi-lo para vermos o que é que ele tem a dizer-nos e o que é que o levou àquela circunstância. Este teu livro também fala de Deus. Nestas sociedades ocidentais, falo da francesa e da portuguesa, que são as que conheço melhor, ainda há lugar para o Deus tradicional, o Deus antigo? Bem, nos nossos países, Deus andou a perder terreno nas últimas décadas. Eu quase me atreveria a dizer que, mesmo quem tem uma filiação católica, o que ainda é a maioria da população… em Portugal, bastante, em França, um pouco menos, mas ainda é representativa… dizia eu que mesmo o Deus de quem vive nessa comunidade católica já não é exatamente o Deus do século XIX ou de outros séculos. Mas, também é verdade, que as religiões de outro cariz, mais ligadas a movimentos carismáticos ou o fruto das imigrações, têm vindo a crescer, marcando uma forte presença. Há mesmo quem diga que o século XXI vai ver o surgimento de um Deus mais tradicional. Portanto, como se vê, isto é tudo muito mutável Mas, então, na tua opinião, como é que explicas esse regresso do Deus tradicional que acabas de descrever, quando vivemos um tempo em que a ciência parece responder a quase tudo. Ou seja, já não precisamos de Deus para nos explicar fenómenos que antes eram inexplicáveis, mas que hoje já conhecemos, graças aos avanços científicos, as suas origens, o seu funcionamento… A questão é que a ciência explica os fenómenos, mas não lhes atribui uma causa última. Eu acho que há uma questão que pode estar ligada a isto: numa sociedade onde os problemas básicos vão sendo supridos – por exemplo na Europa ou nos Estados Unidos pouca gente passa fome, felizmente, e portanto vamos subindo na Pirâmide de Maslow, que faz a hierarquia das necessidades humanas – nós temos tempo para pensar “então o que estamos aqui a fazer? E para quê?” Fazemos todas as perguntas difíceis, as mesmas que não fazemos quando temos fome, pois estamos ocupados com a nossa sobrevivência. Para muitos, Deus já não dá respostas satisfatórias. Há quem encontre essa resposta na humanidade. No humanismo? No humanismo, sim, nos valores civilizacionais. Mas, na verdade, é uma resposta de um grau diferente, que não dá o mesmo sentido global que um Deus, apesar de tudo, oferece. Nuno, vamos falar do teu registo enquanto escritor. Todos os teus livros, quase todos, creio, se passam num espaço hermético, sem ligações ao exterior. Seja um hotel, um prédio, agora um lugar de cativeiro… O primeiro foge a essa lógica. Sim, o primeiro foge um bocadinho. Bem, por um lado, há um certo fascínio por obras que usaram o mesmo recurso, por exemplo, no cinema, os casos do “Janela Indiscreta” do Hitchcock ou “Os Doze Homens em Fúria”, filme sobre um júri que delibera sobre um crime de homicídio. Eu sempre achei que esse reduzir do espaço ajuda a intensificar as personagens e a interação entre elas. É como um pequeno teatro. Também escreveste peças de teatro. Também escrevi peças de teatro e fiz teatro, portanto… o teatro no fundo é isso: vamos reduzir o universo a estes metros quadrados e vamos intensificar a experiência. Então, tu usas a exiguidade do espaço para potenciar os personagens? Sim, é um pouco como um laboratório: vamos meter estes reagentes e ver o que sai daqui. E isso ajuda-me para que não haja dispersão, que não haja ruído. É, portanto, um mecanismo que eu tenho achado útil nos meus livros. Outra coisa que se nota em todos os teus livros é a existência de pequenas narrativas que vão sempre aparecendo no meio da narrativa longa. Não te apetece escrever um livro só de contos? Na verdade, o livro sobre o hotel, o “Se Eu Fosse Chão”, é um pouco um livro de contos. Ou seja, há um arco e um espaço que é comum, há linhas narrativas que comunicam, mas não deixa de ser um livro de contos. Isso tem a ver com o meu início, comecei por escrever contos, tem a ver com o facto de admirar muito alguns autores de contos… podia citar o Italo Calvino, o Cortázar, o Borges… foram todos escritores muito influentes no meu começo literário. E, portanto, vou encontrando forma de fazer contistica dentro dos romances, ou, se calhar, o contrário, vou enganando o público, dando-lhes contos vestidos de romance. Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris Próximo convidado Quarta-feira, 26 de setembro, 8h30 Domingo, 30 de setembro, 14h25 [pro_ad_display_adzone id=”9235″]