Nuno Gomes Garcia conversa com António Bizarro: “O futuro não chega para todos ao mesmo tempo”

António Bizarro nasceu na cidade de São Paulo em 1978 e cresceu no Barreiro. Já publicou quatro livros: “O longo caminho de regresso” e “O desejo e outros demónios”, ambos publicados em 2017, e o muito recente “O motor do caos e da destruição”, lançado no passado mês de janeiro.

Além de escritor, o António é também compositor de música eletrónica.

Nós hoje falaremos do seu mais recente trabalho: “O invisível, a sua sombra e o seu reflexo”, uma coletânea de contos editada pela Coolbooks e já disponível nas livrarias.

A obra de António Bizarro tem como característica essencial o facto de os contos se ligarem entre si, tal como esta coletânea se liga aos livros anteriores. E essa característica essencial, essa trave mestra da sua obra, chama-se Saint Paul, a cidade que serve de palco a todas essas diferentes narrativas que no fundo são a mesma. Saint Paul é um espaço escuro, profundamente urbano e propenso à solidão.

Também os seus personagens são recorrentes. Lembro-me por exemplo de Tony Dornbusch, um escritor que é uma espécie de fio condutor, de guia que nos introduz em Saint Paul.

Ora, sejam então bem-vindos ao admirável mundo novo de Saint Paul, um registo raro na Literatura portuguesa e que nos faz lembrar autores tão extraordinários como o norte-americano Philip K. Dick.

 

António, Saint Paul não faz lembrar a cidade de São Paulo apenas pelo nome. Nota-se nos teus contos um certo esmagamento urbano, sente-se na verdade uma certa desproporção de escala entre a cidade e a humanidade que a habita. Estou certo se dizer que a verdadeira São Paulo te serve de inspiração?

Sim, nesse sentido, sim. A última vez que visitei São Paulo foi já há algum tempo, em 1998, mas senti isso. São Paulo é enorme. Tem de se ir de carro para todo o lado. Para ir de autocarro de um extremo para o outro da cidade demora-se duas ou três horas. Não é como em Lisboa que, apesar de tudo, as coisas são perto. Por exemplo, a zona norte de São Paulo está dividida em zona norte e em zona sul. Aquilo é tão grande que as próprias zonas têm zonas. No entanto, no que diz respeito às indústrias, àquele sentimento pós-industrial, das fábricas, inspirei-me no Barreiro.

 

Por um lado, tu vives, já to ouvi dizer, entre o castelo gótico de Pirescoxe e uma oliveira milenar. Por outro, compões música eletrónica e criaste nos teus livros um mundo urbano, futurista, pós-apocalíptico… Vou dar-te um exemplo. Logo ao abrir este novo livro, quando falas nos pescadores, tu escreveste o seguinte: “Ao longe, alinhados ao longo da muralha como pássaros num cabo de eletricidade”. Tens logo aqui o contraste entre o antigo e o moderno. Na tua opinião, o futuro precisa do passado ou, como em algumas distopias, o futuro deverá apagar ou reescrever o passado?

O futuro é sempre construído sobre o passado. No mesmo ano, na mesma altura, na mesma época pode existir esse contraste. Há pessoas que têm ligação à internet e ao mesmo tempo pessoas que nem sequer têm água potável. Há zonas do mundo assim. Pessoas que têm telemóveis e computadores e pessoas, no mesmo país, em zonas rurais ou mais pobres, que são analfabetas. Isso será sempre assim, em paralelo. O futuro não chega para todos ao mesmo tempo. É curioso. Essa imagem dos pescadores é muito típica do Barreiro. Nós estamos virados para norte e há muita pesca. Na muralha, na Avenida da Praia ou aqui ao pé de mim na Quinta da Lomba, vê-se os pescadores de manhã. O passado e o presente influenciarão sempre o futuro.

 

A música tem um papel importante no teu trabalho. Em “O motor do caos e da destruição”, por exemplo, um personagem que é o vocalista de uma banda, o “Brides of Christ”, é contaminado por uma estranha doença. Posso dizer que a música e a literatura são elementos que para ti andam sempre associados?

Sim, sim. Eu comecei a escrever porque queria escrever letras de música. Foi quando comecei a tocar guitarra. Claro que eu já tinha interesse por livros e por literatura. Fui então desenvolvendo as duas coisas em paralelo. Ou seja, comecei a escrever letras de música, que não chegaram a tornar-se em canções, continuei com o trabalho da escrita e começaram a surgir poemas e textos mais longos. E daí até aos contos foi um salto. Em paralelo, continuei com a música. Fui fazendo música eletrónica, só com software, sem voz. Havia alturas em que ora me dedicava à escrita, ora à música. Nos últimos anos, as coisas já não são assim. Já não correm tanto em paralelo, a música e a escrita, mas, sim, contaminam-se uma à outra. Têm-se cruzado mais. Tenho agora um projeto de música rock, com voz, e finalmente já escrevo letras que se estão a tornar canções. É uma espécie de círculo.

 

António, há pouco salientei que o teu registo é raro na Literatura portuguesa e até nos projeta para algo de que eu gosto muito que são os contistas norte-americanos. Eu mencionei o K. Dick, mas poderia ter falado de outros. Existe este tipo de influência anglo-saxónica no teu trabalho?

Sim. Não é por acaso que um dos meus escritores favoritos é o J. G. Ballard que escreveu muitos livros de contos. O K. Dick também. O Lovecraft. Mas quem realmente me fez pensar que o conto poderia ser um género ao qual eu me poderia dedicar quase exclusivamente foi o Jorge Luís Borges. Ele escrevia contos, ensaios, poesias… ele nunca escreveu um romance na vida. Ele escreveu algo que me ficou: “para quê espraiar em 500 páginas uma ideia que se consegue transmitir a outra pessoa em 20 segundos”. É mais ao menos esse o meu lema, digamos assim. Para quê 500 páginas, se eu posso escrever uma história em 50 ou 60?

 

É raro o livro de 500 páginas que não tenha “palha”.

Sim, e no conto tem de haver uma economia de palavras, de recursos…

 

E tens planos para continuar a construir este mundo de Saint Paul?

Tenho, sim. O próximo livro já está a ser preparado. Será uma espécie de novela. Ao contrário dos outros, será um livro com uma única história e vai contar com ilustrações feitas por um artista barreirense, o Sérgio Aranha. É ele que faz as capas dos meus álbuns de música. Contamos que até ao fim do ano possa estar nas prateleiras.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Célia Correia Loureiro, autora de “Demência”

Quarta-feira, 24 de abril, 9h30

Domingo, 28 de abril, 14h25

 

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