Opinião: Uma geringonça à grande e à francesaJoão Cruz Ferreira·Opinião·16 Julho, 2024 Não, não se pode depreender dos resultados do escrutínio de 7 de julho que a vontade dos Franceses foi a rejeição de um Executivo RN. Pelo contrário, o partido de Le Pen obteve uma vitória esmagadora no voto popular, arrebatando 36% dos sufrágios e conquistando 10 milhões de eleitores, numa subida significativa face ao já extraordinário resultado das eleições europeias. No seguimento da primeira volta, a 30 de junho, antes de sequer haver oportunidade de se esmiuçar a mensagem passada pelo eleitorado, Gabriel Attal, num comunicado televisivo dirigido aos Franceses pouco depois do fecho das urnas, clarificou o que estava em jogo para o campo presidencial: bloquear uma eventual maioria RN, que se encontrava “às portas do poder”, a todo o custo. Assim, nos dias que se seguiram, círculo eleitoral por círculo eleitoral, começaram as micro-manobras que ditaram o resultado final. Os arranjinhos eleitorais entre a “Macronia” e a Esquerda, com uma série de desistências estratégicas combinadas nos vários duelos triangulares para impedir uma divisão de votos face aos candidatos da aliança RN-Ciotti, revelaram-se determinantes num sistema eleitoral uninominal a duas voltas. Assim, para conservar o poder sem “coabitação”, Macron escolheu aliar-se à coligação liderada pela Extrema-esquerda, tapando os olhos às suas bandeiras repugnantes, como a cultura anti-policial, o antagonismo à propriedade privada, a apologia do terrorismo e do separatismo etnoracial ou o comportamento parlamentar deplorável e antirrepublicano. Nem a presença nas listas da Nova Frente Popular de personagens infrequentáveis como Raphaël Arnault (porta-voz do movimento antifa “Jeune Garde” e cujo nome consta de uma lista de indivíduos – “fiché S” – acompanhados pelo Ministério do Interior por representarem um perigo para a segurança nacional), Philippe Poutou (que defende que a violência nas ruas é parte legítima do combate social), Louis Boyard (antigo traficante de droga que apelou publicamente a uma insurreição estudantil durante os protestos pelo aumento da idade da reforma) ou a dupla “woke” Sandrine Rousseau/Aymeric Canon (célebres pelas suas tiradas antissemitas, sexistas, anticapitalistas ou de radicalismo ecologista e animalista) o demoveram. Desta aliança pré-eleitoral circunstancial entre trotskistas e neoliberais irá resultar, tudo indica, uma coligação pós-eleitoral governativa a pender fortemente para a Esquerda. Tudo isto apesar da rejeição, por parte de 73% dos Franceses, de um cenário de ascensão da Esquerda ao poder. Já tive a oportunidade de expor publicamente as razões pelas quais creio que um Governo RN não é a solução para os problemas da França. Mas no campeonato da coerência e articulação, bem como da moderação e sensatez, a aliança RN-Ciotti leva por vencida a geringonça ideológica de socialistas, verdes, comunistas e “insubmissos” todos os dias. Há mais de 40 anos que a mobilização do eleitorado francês não atingia os níveis destas eleições legislativas antecipadas, convocadas por Macron para possibilitar um esclarecimento sobre a situação governativa (“c’est un temps de clarification indispensable”). Ora, em nenhum dos dois sufrágios a maioria cessante terminou no topo das contagens de voto, já depois de uma estrondosa derrota nas eleições europeias. Quer isto dizer que a decisão dos franceses de dar um novo rumo ao país foi clara e inequívoca. No entanto, é a “Macronia” que está em vias de formar uma maioria parlamentar, de onde sairá o próximo Primeiro-Ministro francês, com a Esquerda, em troca da negociação de algumas cedências, como eventuais cargos ou compromissos programáticos. A vantagem? Parece estar impedida a chegada de Mélenchon a Matignon. A desvantagem? Sem uma maioria corajosa e reformista, muito pouco mudará no país em matéria de imigração, da questão securitária ou de justiça, continuando a gritante desconexão entre a classe política e as preocupações dos franceses que marca os mandatos de Macron. . João Cruz Ferreira Funcionário da UE destacado em Paris Autor de “A França a olho nu”