Albano Cordeiro por Albano Cordeiro: nos passos de um Mufana

Vou contar a história de um mufana (garoto), filho de colono, que corria nas ruas de Maputo nos anos 40. Jogava à bola nos terrenos abertos, seguia atrás das tombazanas xunguila (raparigas bonitas). E frequentava a escola primária, onde aprendeu pouco ou nada sobre Moçambique. Em casa havia prateleiras de livros. Alguns tratavam assuntos ligados ao colonialismo português. Por vezes, eram críticos, mas não era a regra, pois os livros vendidos nessa altura passavam pela censura.

Ele observava que os patrões eram quase todos europeus, assim como os empregados do Estado e da Câmara Municipal: alguns eram monhés, muçulmanos da Índia, ou chineses, e outros mulatos. Fez o terceiro ano do ensino secundário no Liceu Salazar novinho em folha, na época em que entraram no ensino secundário os dois primeiros filhos de «indígenas» (ou «assimilados»).

Nos anos 40 e em grande parte dos anos 50, falava-se pouco de independência dos povos colonizados, e ainda menos de independência de Moçambique. Mas a revolta dos Mau-Maus (membros de uma tribo do Quénia), que se desenrolou nesses anos, provocou uma inquietação e apreensão alargadas, pois dava veracidade à possibilidade de uma revolta dos «indígenas» em Moçambique.

Durante os anos de liceu, ele informou-se melhor sobre o país onde vivia. Foi assim que, graças a um pai que era da oposição ao regime salazarista, começou a conceber a possibilidade de um Moçambique independente onde se vivesse como em tantos outros países do mundo.

Por falta de universidade em Moçambique, quem acabava o liceu e previa continuar os estudos, devia partir para Portugal. Neste país, ele aproximou-se da associação dos estudantes das colónias, chamada Casa dos Estudantes do Império (CEI), à qual aderiu no ano que seguiu a sua chegada a Portugal. Os membros da CEI eram maioritariamente filhos de colonos europeus, se bem que os estudantes cabo-verdianos mulatos representavam grande número. Entre estes, muitos eram pela independência das colónias. Na sequência de movimentos de massa de estudantes das universidades portuguesas, lutando pela liberdade e a democracia, no início dos anos 60 emergem dirigentes da CEI favoráveis à ideia de independência das colónias. Inscrevendo-se nesta linha, em 1960 ele foi eleito Secretário geral da CEI da Universidade do Porto (1960).

Nos primeiros meses de 1961, ocorrem em Angola vários combates levados a cabo por militantes pela independência. Neste contexto, são enviadas para Angola as primeiras tropas portuguesas, dando início assim à guerra colonial. Ao mesmo tempo, a Polícia de Investigação e de Defesa do Estado (PIDE), que constituía uma organização que infiltrava os meios críticos ao regime, começou a chamar para interrogatório estudantes das colónias, militantes associativos e outras pessoas conhecidas ou supostas como ativas politicamente, a favor da independência das colónias. Soube-se então que o Secretário geral da CEI de Lisboa e o da CEI de Coimbra tinham sido convocados para interrogatório na PIDE. Para não se encontrar na mesma situação, decidiu fazer imediatamente um pedido de passaporte e partir sem hesitações para a França (não tendo sido aceite, após o exame físico, para entrar no serviço militar, em 1957, em Lourenço Marques – hoje Maputo -, podia ter acesso ao passaporte e sair do país).

Após ter respondido positivamente ao pedido urgente de um militante angolano de lhe fornecer a lista completa dos membros da CEI, com nome e endereço de cada um, ele receava o que poderia se passar em caso de convocação à PIDE, pois o militante angolano, chamado Lima de Azevedo, era conhecido pelas suas ligações com o MPLA. E foi conscientemente que a lista pedida lhe foi entregue. Soube-se mais tarde que um número importante de estudantes das colónias tinha partido de carro, clandestinamente, para a França. Estava assim explicado o pedido de informação referente ao nome e endereço dos associados da CEI.

Porque tinha já uma inscrição de pedido de passaporte em Lisboa, foi nesta cidade que um novo pedido foi feito. Pela mesma ocasião aproveitou a presença do irmão em Lisboa para lhe explicar a situação e transmiti-la aos pais. A viagem foi de comboio. Chegado a Paris quatro dias depois da partida de Portugal, o problema urgente consistia em estabelecer o contacto com os associados da CEI e com Lima de Azevedo em particular. Passaram vários dias, quando, fazendo uma fila para entrar num restaurante, ouviu uma voz que se exprimia em português versão angolana. Era um estudante membro da CEI do Porto. Daí nasceu um encontro com um corresponsável angolano da organização da saída de Portugal de estudantes das colónias.

Após um interrogatório na sede da CIMADE, um pedido de bolsa de estudos foi enviado para uma organização católica suíça, que lhe indicou a RUI (Residência Universitária Internacional), em Roma. Apresentando-se na RUI em princípios de dezembro de 1961, ele descobre que esta instituição era gerida pela Opus Dei, movimento religioso afirmadamente direitista.

A CIMADE (Comité Inter-Movimentos junto dos Refugiados) é uma organização de apoio político aos migrantes, refugiados, asilados e estrangeiros em situação irregular. Esta organização permitiu a saída de Portugal dos estudantes das colónias no primeiro semestre de 1961, e foi no lar da CIMADE, em Sèvres (arredores de Paris), que esses estudantes foram albergados. Outros, que saíram de Portugal mais tarde, e que eram politicamente ativos, foram igualmente alojados neste lar, como no caso abordado aqui. A estadia em Paris foi uma ocasião para contactar militantes moçambicanos. O principal contacto foi com Marcelino dos Santos, ligado à Coordenação das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas – mais tarde dirigente da Frelimo. Outro contacto foi o de José Carlos Horta, antigo estudante do Liceu Salazar, na época estudante em Leipzig.

Vários responsáveis do movimento de libertação de Angola, ligados sobretudo a Viriato da Cruz (um dos principais fundadores do MPLA) e Carlos Belo, da União dos Estudantes de Angola, assim como cabo-verdianos, moçambicanos e santomenses, vão fundar, em meados de 1961, em Rabat, a União Geral dos Estudantes da África Negra (UGEAN), definida por alguns dos seus membros como a Casa dos Estudantes do Império «do exterior».

Os contactos com a UGEAN, com Horta e com Marcelino continuaram após a instalação em Roma. Foi assim que Horta, encarregado da organização do 2° Congresso da UGEAN em Rabat, em agosto 1963, propôs-lhe de entrar na Comissão de preparação. Este Congresso revelou uma linha de fratura a nível estratégico no seio da UGEAN. Com efeito, uma linha defendia a convergência solidária das lutas e das contribuições dos estudantes, e uma outra linha, que acabou por triunfar, privilegiava a ligação existente entre cada união estudantil e o partido, levando avante a luta de libertação nacional. Neste caso o papel da UGEAN tornar-se-ia mais simbólico que real. A sede da UGEAN mudou-se entretanto para Argel, e dois anos depois deixou de funcionar.

Uma reunião do Conselho Consultivo da UGEAN teve lugar em Praga no verão de 1964. Como membro do dito Conselho, participou nesse encontro. A orientação estratégica da UGEAN evoluiu após o Congresso de1963, e o conselho de 1964 refletiu sobre a nova situação. A «limpeza» traduziu-se na exclusão do «clã do Horta» e certas ações ambíguas levavam a crer numa hostilidade à Frelimo. Ora, a luta de libertação de Moçambique foi sobretudo a obra da Frelimo.

 

Anos depois

A revolução do MFA de Abril 1974 vai abrir a via à independência das colónias. Moçambique obteve-a em junho de 1975. Os jovens empenhados ou não na luta pela independência regressam ao país, principalmente vindos dos países vizinhos. Mas muitos foram os antigos estudantes empenhados no estrangeiro na luta de libertação que permaneceram lá onde viviam, por razões económicas e familiares. Outros, militantes ativos, voltaram ao país pondo-se ao serviço do Governo para exercerem responsabilidades. Foi o caso de alguns colegas do tempo do Liceu. Cito alguns, de memória, Sérgio Vieira, Hélder Martins, José Júlio de Andrade, F. Ganhão, Óscar Monteiro, M. Elisabete Sequeira, Pascoal Mocumbi e Joaquim Chissano.

Objetivamente e subjetivamente impedido de contribuir na construção de um Moçambique novo, investi o meu entusiasmo e a minha força de vontade noutros terrenos. Houve o Maio 68 em França, e tantos e tantos acontecimentos que me empolgaram, que me deram alento para ficar fiel aos ideais da independência. Os primeiros Governos de Moçambique pós-independência foram definidos como «pro-soviéticos» (o partido único formava os Governos). Samora Machel, pouco antes do atentado do qual foi vítima, em 1986, teria começado a viragem estabelecendo relações com o Fundo Monetário Internacional. O Presidente Joaquim Chissano levá-la-ia a cabo, instituindo uma democracia de tipo representativo. As primeiras eleições «livres» tiveram lugar em outubro de 1994. Foi a ocasião de voltar a pisar a terra de Moçambique da minha infância e adolescência. Decidi então participar neste acontecimento importante no caminho da independência. Candidatei-me a Observador eleitoral internacional, pela França e pela Comunidade Europeia.

A viagem foi em duas etapas. Os observadores eram concentrados, por alguns dias, em Pretória, e em seguida enviados para a zona de observação eleitoral. Antes da segunda etapa houve tempo de dar um salto a Maputo. Assim, após a missão de observação, houve ainda tempo para voltar a Maputo. Foi com emoção que percorri as ruas do meu bairro, da Polana e da Baixa. Fui à Costa do Sol e a Catembe. Conheci, entre outras personalidades, Fernando Lima, do semanário Savana, Luís de Brito, pesquisador universitário, Mia Couto, escritor multi-premiado, conheci também Alice Mabota, Presidente da Liga dos Direitos Humanos, da qual me aproximei, tornando-me aderente. Estas relações foram úteis para um certo número de ações e de intercâmbios.

As eleições seguintes (1999, 2004 e 2009) foram novas ocasiões para voltar a Moçambique, como Observador eleitoral civil designado pela Liga dos Direitos Humanos. Assim, sendo possível retornar a Moçambique, a minha terra, a partir de meados dos anos 90 voltei a Moçambique todos os dois-três anos, com estadias de uma, duas ou mais semanas. Convidei a minha filha a passar uma semana em Maputo. Era muito importante que ela partilhasse a minha ligação com Moçambique. Convidei e interessei a minha esposa, que fez várias estadias em Maputo e também em Nampula. Por sua vez ela conheceu uma senhora moçambicana natural de Maciene (Província de Gaza), a principal animadora da criação do Centro Cultural para Idosos na sua povoação. Contribuímos financeiramente à criação deste Centro e participámos à sua inauguração que teve lugar no dia 23 de fevereiro de 2019. Tomámos a palavra nesta ocasião. O presente texto inspira-se na minha intervenção.

 

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Albano Cordeiro

Albano Cordeiro é sociólogo e economista, atualmente na reforma. Viveu a infância e a adolescência em Moçambique, fez uma parte dos estudos universitários no Porto. Em 1961 exilou-se em Roma e Paris onde reside há mais de 40 anos. Foi pesquisador no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), na Universidade de Grenoble e também na Universidade Denis Diderot – Paris VII. Publicou numerosos trabalhos sobre a imigração em França, e particularmente sobre o movimento associativo português. Foi premiado em Economia e Demografia pela Universidade La Sapienza, em Roma. Albano Cordeiro também desenvolve uma ação de militante em várias associações e organizações de defesa dos direitos dos imigrantes, especialmente no que diz respeito aos direitos cívicos, à cidadania e à democracia participativa.

Albano Cordeiro

 

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