«Caminhos incas», uma incursão poética em terras andinas, de Maria Graciete Besse

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Se a mulher e a condição social feminina ocupam um espaço preponderante, tanto na sua obra literária quanto nos seus ensaios e estudos universitários, a viagem também é um dos temas prediletos de Maria Graciete Besse.

“Caminhos incas” (Editora Licorne, 2020) é o resultado de uma viagem que Maria Graciete Besse realizou em terras americanas e mais particularmente em terras andinas. Neste volume, os poemas estão repartidos em quatro sequências, cada uma incluindo 20 poemas em versos livres e sem títulos: “No Vale Sagrado”, “Mulheres na Claridade”, “A Flor do Enigma” e “Entre os Lábios dos Vulcões”.

Dois versos, belíssimos pela sua sonoridade e densidade, poderiam servir de fio condutor que atravessa todos os poemas do livro: “na vibração cintilante da pedra / ressoa a memória dos vencidos”. A pedra como elemento dominante da paisagem e da civilização inca e a memória como ato de resistência frente à “cegueira da conquista” e às “feridas do desastre” que ainda hoje não se cicatrizaram.

Ao longo destes “caminhos incas”, que convergem para Cusco, primeira capital do império inca, Maria Graciete Besse nos vai revelando suas emoções e seus sentimentos, através de um “eu” lírico solidário e coletivo (“Seguimos o Urubamba e atravessamos o / vale sagrado para subir às ruínas de Pisac / entre socalcos verdes e caminhos de água”) e evocando a história e o destino trágico do povo inca, os lugares célebres: Machu Pichu, “cidade fortaleza que a selva preservou / durante séculos da voracidade estrangeira”, ou a enigmática fortaleza de Sacsayhuaman, assim como as paisagens majestosas dos Andes (“Pelo Vale do Colca, os penedos / roçam a asa porosa das nuvens / com rumores de encantamento”, ou ainda, “Ao longe, um manto de neve enfeita de / inverno a harmonia das montanhas”).

Por outro lado, viajam pelos seus poemas diversas personagens míticas: a Pachamama (terra-mãe), que “resiste ainda ao / pranto das terras usurpadas”, Viracocha, “o velho do céu” que “inventou o sol, a lua e as estrelas / e criou na argila todos os habitantes das grutas primodiais”, e o grande Inti Raymi – o Deus-Sol; ou personagens reais do período inca: Atahualpa, que foi capturado no “grande desastre de Cajamarca” pelos soldados de Pizarro, “marquês analfabeto que semou aflição”, e o Inca Garcilaso de la Vega, “de sangue cruzado”, um dos primeiros cronistas do Novo Mundo.

Também acompanha personagens contemporâneas, principalmente mulheres (“As mulheres da claridade”), a começar por Suzanne Morales Mendoza, a quem o livro é dedicado. Assim, numa das ilhas do lago Titicaca, Maria Graciete Besse conta-nos o sonho de Marí, que vive numa ilha flutuante: “Marí tem quinze anos, ouve cantigas / de amor num rádio de pilhas e sonha / ser mais tarde professora de crianças / aimarás” na escola de Puno. Seguem outras figuras femininas: a cantora Clorinda Matto e a poeta Blanca Varela, em Lima, assim como Carmen Ollé, também poeta, “sem medo nem pudor / o feminino intacto”, autora de “Noches adrenalina”; Pilar Dughi, escritora e psiquiatra, que faz parte das mulheres que “venceram o medo” (“No bairro de Miraflores, ninguém se lembra das crianças desvairadas que a psiquiatra / arrancou um dia da loucura.”); Flora Tristan, “a bastarda, pária, rebelde e destemida”, que em 1833 deixou o porto de Bordeaux para uma longa viagem; e sem esquecer as outras mulheres, como as camponesas: “Que seria delas nos dias mais amargos / sem a ajuda da Pachamama?”

A incursão poética através destes “caminhos incas” termina “pelos claustros antigos de Santa Catalina” (Arequipa), ou pelas ruas estreitas de Cusco, durante a festa do grande Inti Raymi no solstício de inverno, ou “pelos lábios dos vulcões” à procura do enigma: quem transportou as pedras encaixadas como legos / nas alturas de Machu-Pichu? / de quem eram os crânios deformados em rituais de / fogo, escondidos entre as ruínas? / A mão procura às cegas o calor do enigma inicial / a força sagrada de Inti, para ultrapassar a morte”.

Já aqui tivemos a oportunidade de lembrar o brilhante percurso universitário e literário de Maria Graciete Besse: nasceu na Caparica, em 1951, licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa e veio para a França em 1974. Foi responsável do Departamento de Português da Universidade de Paris IV-Sorbonne, onde fundou e coordenou o Grupo de Estudos Lusófonos CRIMIC, até se aposentar, em 2016. Entre as suas mais recentes publicações podemos citar o livro de poesia “Na inclinação da luz” (2018) e o magnífico romance “O duplo fulgor do tempo” (2019). Publicou também vários estudos sobre a escritora Lídia Jorge e recentemente coordenou, com Nazaré Torrão, o colóquio internacional “O poder da imagem na obra de Lídia Jorge”, que teve lugar na Universidade de Genebra, dias 15 e 16 deste mês.

 

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