Filme de Ana Sofia Fonseca sobre Cesária Évora sai hoje nos cinemas franceses



O documentário “Cesária Évora – La diva aux pieds nus”, da realizadora portuguesa Ana Sofia Fonseca, sobre a artista cabo-verdiana Cesária Évora, estreia-se esta quarta-feira, dia 29 de novembro, nos cinemas em França, um país com “um significado especial, pois foi onde a lendária cantora alcançou o sucesso que a levou aos quatro cantos do mundo”, diz um comunicado da Carrossel Produções.

“A primeira vez que eu pensei que alguém devia fazer um filme sobre a Cesária foi uns dias depois da morte dela [ndr: Cesária Évora morreu a 17 de dezembro de 2011]. Nessa atura nem pensei em mim” confessou a realizadora numa entrevista ao LusoJornal. Mas o tempo foi passando. “Entretanto comecei a fazer mais cinema e quando se quer muito alguma coisa, vamos puxando sempre para a frente”.

Ana Sofia Fonseca tem casa em Cabo Verde, não muito longe da casa de Cesária Évora. “Em 2017, estou na minha casa em Cabo Verde, a cozinhar – porque eu gosto muito de cozinhar para os amigos – e há um amigo que me diz ‘tens de vir em fevereiro porque a escola de samba Tropical vai fazer 30 anos e vai fazer uma homenagem à Cesária’” conta ao LusoJornal. Todos os amigos da realizadora sabiam o quanto ela gostava da ‘diva’ e que tinha esta vontade de fazer um filme sobre a cantora. “Eu lembro-me que estava a cozinhar um Risoto e fiquei com a colher de pau na mão e pensei, é agora. No dia seguinte, estava a falar com a neta da Cesária”.

Durante cerca de 20 anos, Ana Sofia Fernandes foi jornalista na imprensa escrita e na televisão. É uma contadora de histórias com cerca de 20 documentários realizados para a televisão, seis livros publicados entre os quais um romance.

Em 2011 criou a sua própria produtora em Lisboa, a Carrossel Produções, essencialmente vocacionada para séries documentais. “Cesária Évora – La diva aux pieds nus” é a segunda longa-metragem da produtora, depois de “A whole life of septembre (Setembro a vida inteira)” em 2018, que ainda não saiu em França.

Ana Sofia Fonseca trabalha atualmente num outro documentário, sobre a guerra colonial, que está a filmar entre Portugal e Moçambique.

.

Uma caça às imagens de arquivo

“Cesária Évora” conta com imagens de arquivo, gravações inéditas e testemunhos de quem privou com Cize (como era conhecida), dos tempos da pobreza ao reconhecimento mundial que chegou depois dos 50 anos.

Desde o início, Ana Sofia Fonseca queria que fosse um filme com imagens de arquivo. “Começamos logo à procura de material de arquivo, sabendo que era difícil. Estamos a falar de Cabo Verde, nos anos 70 e 80. Quem é que tinha uma câmara de filmar naquela altura? Não era uma coisa vulgar” diz a realizadora.

Mas era importante ter estas imagens e ter também as gravações sonoras, “para que as pessoas se sentissem verdadeiramente com a Cesária”.

Foi necessário contactar com “centenas de pessoas” para começar a obter as primeiras imagens um ano depois. “As primeiras imagens foi um músico que nos deu. Ele tinha-nos dito que tinha uma câmara e que tinha feito imagens das digressões, mas não fazia a mínima ideia onde estavam as cassetes. O tempo foi passando, até que um dia ele foi de férias de Cabo Verde, encontrou as cassetes e trouxe-me dentro de um saco de plástico”.

Só dois anos depois de Ana Sofia Fonseca estar a trabalhar no filme é que obteve também imagens do agente que a deu a conhecer ao mundo, José da Silva. “Ele contou-me que a certa altura teve uma câmara. Mas também teve de procurar as cassetes e elas não apareciam. Um dia, durante a pandemia ele enviou-me uma foto por whatsApp com as cassetes”.

“Eu sabia que havia coisas, mas não sabia o quê. Eu acho que no fundo acreditava que íamos conseguir imagens. Eu sabia que a história era muito rica, era uma história que eu queria muito contar” confessou ao LusoJornal.

Apaixonada pela voz de Cize, a realizadora debruçou-se essencialmente na pessoa, “uma mulher excecional” que “não se deslumbra com a fama, usa a fama para ajudar os outros”, contou Ana Sofia Fonseca.

.

Um carinho especial pela França

Cesária Évora tinha um carinho especial pela França e pelos Franceses. “Costumava dizer que, se não fossem os Franceses, ela não teria tido sucesso” garante Ana Sofia Fonseca.

A realizadora conta ao LusoJornal como aconteceu o encontro com José da Silva.

Na altura, a Cesária estava a cantar no bar do Bana, em Lisboa, um bar muito conhecido da comunidade cabo-verdiana. Quem viajasse e fizesse escala em Lisboa, ia ali ouvir música, e por vezes até com as malas da viagem. “O José da Silva foi lá ouvi-la cantar um dia”.

José da Silva trabalhava na SNCF, mas organizava eventos para a Comunidade cabo-verdiana da região de Paris. “Organizava espetáculos, ou sobretudo jantares dançantes para a Comunidade” conta Ana Sofia Fonseca.

“Isto começou com a Comunidade cabo-verdiana, mas um dia o José da Silva conseguiu que a Cesária fosse cantar ao Festival de Angoulême. Foi ali que os jornalistas a descobriram e começaram a falar dela” conta a realizadora.

Em abril deste ano, o então Diretor do Festival de Angoulême esteve na ilha de Santiago, no Crioulo Jazz, um festival de música organizado precisamente pelo José da Silva. “Fizemos uma projeção do filme lá. Foi muito bonito ter esta pessoa a ver o filme, porque ele acabou por ter um papel importante na vida da Cesária. Porque aceitou que esta mulher, que ninguém conhecia, fosse cantar a Angoulême. Era uma altura onde havia uma grande abertura para as músicas do mundo, para a música tradicional do mundo, e acredito que foi ali que a Cesária começou a chegar aos Franceses”.

.

A cumplicidade com José da Silva

O encontro entre a cantora Cesária Évora e o agente José da Silva muda a vida dos dois. “Há gente que diz que o José da Silva descobriu a Cesária. Eu acho que eles se encontraram um ao outro. A Cesária já cantava há muito tempo e ele já a tinha visto uma vez. Mas, mais do que descobrir, eles encontraram-se um ao outro e este encontro mudou a vida de ambos” explica Ana Sofia Fonseca. “Eu vi centenas de horas de imagens e percebi que havia de facto um entendimento, uma cumplicidade, entre os dois”.

A realizadora diz que Cesária era uma mulher livre e gostava pouco que lhe impusessem coisas. “Parece-me que o José da Silva teve a inteligência de perceber isso. Houve coisas que tiveram de ser construídas. Por exemplo, a Cesária pensava que ia a um sítio e bastava cantar duas ou três músicas, como num bar do Mindelo. Mas era uma mulher extremamente inteligente e foi percebendo as coisas e queria ser ouvida, percebeu então que algumas coisas teriam que ser feitas. Se tivessem sido impostas, não teriam resultado. Do que fui vendo, o José da Silva teve essa inteligência e essa capacidade” disse ao LusoJornal.

O impacto da doença bipolar na vida de Cesária Évora é um dos aspetos inéditos do filme que mostra como esta mulher negra e pobre deu a volta ao destino.

O filme teve estreia mundial em 2022 nos Estados Unidos, no festival South by Southwest, e soma vários prémios, em particular prémios do público. A obra foi distinguida com um Prémio Sophia pela Academia Portuguesa de Cinema, os prémios do público no Festival de Cinema de Valenciennes (França), no Festival IndieLisboa, no Festival Caminhos do Cinema Português (Coimbra) e ainda uma menção honrosa no Festival Internacional de Cinema de Cracóvia (Polónia).

.

O que fazer da casa de Cesária?

No fim do filme, sente-se a mensagem da realizadora que gostava que a casa de Cesária Évora fosse transformada num museu.

“O sonho da Cesária era ter uma casa – aquela casa. A casa existe, é do filho e dos netos da filha que morreu. Eles, não moram na casa, mas há muita gente que vai lá tocar na porta porque é a casa da Cesária. Eles gostariam que a casa tivesse novamente as portas abertas como sempre foi a casa da Cesária”. Mas para tal é necessário apoio. “Podia haver outra forma de lidar com este legado. A verdade é que a casa está lá, mas é preciso que alguém dê àquela casa uma outra vida”.

Cesária Évora pôs Cabo Verde no mapa. Teve mais sucesso no estrangeiro do que no próprio país. “As pessoas percebem cada vez mais a importância de Cesária no mundo, mesmo se em Cabo Verde, a Cesária era alguém de muito próximo, muito igual a todos” diz Ana Sofia Fonseca.

Com este filme, vamos entrando não apenas na casa de Cesária Évora, mas também na sua própria vida. Vamos com a cantora e os músicos, de concerto em concerto, de país em país, de avião, de helicóptero, de autocarro,…

Mais do que assistir a concertos, vamos partilhar os bastidores com a “Diva” dos pés descalços.