Historiador Yves Léonard diz que o Estado Novo solidificou a visão histórica de “invenções”


O historiador francês Yves Léonard, autor de “História da Nação Portuguesa”, considera que a realidade histórica em Portugal foi ultrapassada por um “tempo mitológico feito de invenções” que se solidificou no Estado Novo.

“O tempo histórico parece ter desaparecido por detrás de um tempo mitológico feito de invenções: mito da fundação com o ‘milagre de Ourique’ (1139), mito da refundação com a ‘crise nacional’ (1383) e ‘a Batalha de Aljubarrota’ (1385), mito das Descobertas, exaltando a expansão marítima a seguir à conquista de Ceuta (1415) e à chegada de Vasco da Gama (1498)”, escreveu o historiador.

Yves Léonard prossegue: “Tempo mitológico em torno de um sonho de grandeza, senão de sobrevivência, de um país cuja existência devia pouco à geografia, mas tanto à história, a da rivalidade secular com a vizinha e ameaçadora Castela, a da Reconquista aos mouros e a da expansão marítima”.

O também professor de Sciences Po recordou, em entrevista à Lusa, que esta narrativa foi alicerçada durante o Estado Novo (1933-1974): “Foi a primeira vez, em Portugal, em que existiu uma estrutura muito coerente para escrever e conhecer não a história de Portugal, mas o romance nacional, uma narrativa muito especial, para dizer que há uma ligação muito clara entre o fundador da nação, D. Afonso Henriques, o infante D. Henrique, a tomada de Ceuta e a expansão marítima que se lhe seguiu”.

No Estado Novo foi muito “difundida a ideia de que Portugal não é só o retângulo europeu e os arquipélagos, mas a nação una, pluricontinental, ‘do Minho a Timor’, e esta ideia de que Portugal não o é sem o ultramar é uma tradição da historiografia portuguesa, escrevendo a História de Portugal com essa ligação estreita com o ultramar, que é muito diferente de outros países, como a França ou mesmo a Grã-Bretanha, que deteve o império mais importante do mundo”.

Mais do que uma História de Portugal, impõe-se perguntar “qual a história da nação portuguesa, qual é a realidade da nação, antes do século XIX”, afirmou o historiador.

O historiador realçou que há “uma tradição providencialista para afirmar que a nacionalidade é muito, muito antiga, antes do século XII”, algo que não vê como verdadeiro.

“Há uma história de um Estado medieval, independente, com uma língua, mas o sentimento de partilha, de uma coisa muito mais importante que um Estado com fronteiras, etc., e que é uma construção ideológica, literária, não surgiu antes da Revolução Francesa [1789] porque a Revolução parte do princípio da soberania do Nação, antes do rei”, disse o historiador, que remete o nascimento do conceito de nação para a Revolução de 1789.

“A nação é um sentimento muito moderno”, lembrou o historiador, referindo que antes da Revolução se pode falar de território, Estado e até pátria, “mas a Nação, um sentimento de comunidade, só existe depois da Revolução Francesa”.

Yves Léonard disse à Lusa que tem “uma relação de amor” com Portugal, que conheceu pela primeira vez em julho de 1981, o que “foi uma revelação, uma descoberta, algo de muito especial”, reconhecendo que tem “uma vida antes de conhecer Portugal e outra depois”.

“De início, é difícil de compreender Portugal, que é muito diferente de um país como França ou Espanha, é uma especificidade que se tem de compreender”, disse o historiador que começou a fazer pesquisas, nomeadamente do período contemporâneo, em que se especializou, e sobre o qual “não há quase nada em França”.

Em “História da Nação Portuguesa”, o período contemporâneo ocupa mais de metade da obra de 341 páginas, editada pela Planeta Editora.

“História da Nação Portuguesa” traça o percurso do país desde as suas origens até à atualidade. O último facto referenciado na cronologia é a Presidência portuguesa do Conselho Europeu, em 2021.

O autor justificou esta decisão pela sua especialização neste período e pela “necessidade de se analisar o tempo presente, até pela rutura que representa o 25 de Abril de 1974, que é o fim da história dessa conceção da nação una com o ultramar, ao dar-se a descolonização, e a Europa é o novo horizonte da diplomacia e interesses portugueses”.

Yves Léonard, doutorado em História, é investigador associado da Universidade de Rouen-Normandie, em França. Especialista em História de Portugal, tendo já publicado em Portugal “Salazar – Uma Biografia”, saído este ano, “Salazar, o Estado Novo e os Media” (2017) e “Salazarismo e Fascismo” (1998).