I Guerra mundial: O impressionante Relatório dos Serviços de Saúde durante a Batalha de La Lys


Os Arquivos Históricos Militares contêm uma mina de informações, nomeadamente sobre a participação portuguesa na I Guerra mundial. Dezenas de cartões com informações, com história e com histórias, estão por explorar, por divulgar.

Muito se tem escrito nestes últimos anos. Pergunta colocada: a Batalha de La Lys foi uma derrota?

Consoante o prisma em que examinamos o tema, a resposta tanto pode ser sim, como não.

Diremos que se considerarmos o primeiro dia da batalha, o 9 de abril, a resposta é sim, se considerarmos o final da dita batalha, a 29 de abril, a resposta é não.

A Batalha de La Lys, também conhecida pela quarta Batalha de Ypres fez parte da Operação Georgette concebida pelo General Ludendorff.

O dia 9 de abril foi terrível para as tropas portuguesas, contudo a Batalha de La Lys, considerada por alguns como uma derrota, contribuiu para a vitória final dos Aliados.

No dia 1 de maio de 1918, a quarta Batalha de Ypres termina sem que os alemães tenham conseguido atingir o seu objetivo, os portos franceses de Calais e de Dunkerque.

Dos sofrimentos por parte das tropas portuguesas nesta ofensiva alemã, há quem compare da Batalha de La Lys como tendo sido “o Verdun português” ou “a Batalha Alcácer-Quibir portuguesa do século XX”. Talvez haja um pouco de exagero em tais afirmações, havendo necessidade de relativizar e de distinguir o número de vítimas mortais, feridos, presos…

Há por vezes outras tendências: “romancisamento”, “sensacionalismo” da Batalha de La Lys e da participação portuguesa na I Guerra mundial.

Mais do que livros, interpretações, teorias, táticas, transcrever o que, como foi sentido e escrito por quem participou na Batalha de La Lys, realmente, o sentimento do momento, é algo que me muito nos ensina sob o dia 9 de abril 1918 e os dias seguintes da Batalha de La Lys.

São 18 as páginas escritas a 23 de julho de 1918 pelo Major médico responsável pela Ambulância 2, sediada em Merville, José Agostinho Rodrigues, consultadas no Arquivo Histórico Militar (A.H.M.), endereçadas ao Chefe do Serviço de Saúde (S.S.) do Corpo Expedicionário Português (C.E.P.).

Uma exposição dos factos, sem concessão, assumindo o seu subscritor alguns erros, tendo por vezes ido contra ordens recebidas superiormente em situação difícil. Uma das dificuldades foram as comunicações, o que conduziu para mudanças de estratégia em função da evolução dos acontecimentos, riscos e caducidade com que as ordens por vezes chegavam, contraditórias com a situação no terreno.

Temos de ter, para além de tudo isto, em consideração que a descrição foi feita a frio. Após exame das diversas situações, talvez outras explicações pudessem ser dadas.

O Major-Médico José Agostinho Rodrigues, para além de se ter preocupado em evitar vítimas nas gentes que comandava, tentou também salvar bens necessários para socorrer, tratar, preservar arquivos e minorar perdas financeiras.

Na descrição do Major-Médico, compreendemos também o trabalho fundamental no salvamento, ajuda a civis, o facto dos ingleses e escoceses também estarem a sofrer da situação, necessitando ajuda e colaboração da parte portuguesa para serem salvos e curados…

Da nossa leitura das 18 páginas, retiramos alguns dizeres para compreensão e testemunho do que foi vivido, por um elemento importante da organização dos socorros, no dia 9 de abril e seguintes. A descrição começa em Merville antes do 9 de abril, e continuará à sua volta durante os primeiros dias do início da Batalha. Transcrevemos tal como foi escrita na altura.

A nota começa assim: “Em cumprimento do determinado na nota de V. Exa, n°487 de 17 de abril findo, passo às mãos de V. Exa, o relatório das operações em que tomou parte o Hospital de Sangue (HS) n°1, bem como os seus Oficiais presenciaram e conheceram nos dias 9 e seguintes do mez de abril findo.

Para melhor compreensão do que vou expor dividirei este relatório em 8 partes: 1ª o que se passou antes do 9 de abril, 2ª o dia 9, 3ª os dias 10, 11 e 12, 4ª os meus erros, falhas e omissões, 5ª conclusões, 6ª propostas, 7ª recompensas, 8ª explicações…”.

No ponto 4 da primeira parte do relatório, escreveu José Agostinho Rodrigues: “Era público e notório que a população civil afirmava ir ser atacado o nosso sector. Peor indicador ainda, ser visto das previsões dos civis se terem realizado várias vezes”.

No ponto 5: “As CCS [ndr: Casualty Clearing Station – hospital de evacuação inglês] inglezas n°51 e 54, levantaram arraiaes retirando para a retaguarda apezar de estarem estabelecidas na zona destinada a forças inglesas – peor, muito peor indicador”.

No ponto 7 acrescenta “As guarnições inglezas entre Armentières e La Bassée eram retiradas para o sul, ficando esta área da frente muito mal guarnecida… as nossas forças estavam reduzidas e que entre elas e as do sector inglez à esquerda, havia uma extensão de trincheiras em que nem guarnição alguma existia”.

No ponto 12: “Dias antes do dia 9, ocorreram os factos desagradáveis, conhecidos por parte das nossas forças e que veiu confirmar a opinião que se fazia do estado moral delas. Esta confirmação não era necessária porque o estado dos militares que baixavam ao hospital e as informações que davam, revelavam bem o estado de abatimento e esgoto em que as tropas se encontravam”.

Depois da antevisão, dos dias que precedem, segue-se o dia fatídico, o 9 de abril: “Mal luzia a manhã, fria, nevoenta e triste, o H.S. n°1 foi acordado pela explosão duma granada de grosso calibre, que, caindo dentro da cidade, próximo do hospital, fizera estremecer tudo como se se tratasse dum tremor de terra. Eram 4 horas e meia. Na frente, o troar da artilharia era tão intenso que se assemelhava ao ruído resultante da marcha de viaturas pesadas nas ruas duma cidade…

Como as granadas continuassem a cair regularmente, todo o pessoal se levantou, ninguém podia dormir – indo cada um ocupar o seu lugar no serviço hospitalar.

Ignorava-se se se tratava duma ofensiva, se dum simples raid, se dum mero bombardeamento aos acantonamentos como sucedera em meados do mez anterior…

Cerca das 7 e meia, chegou ao HS o primeiro ferido português. O seu estado era grave: ferida perfurante do ventre. Os cirurgiões ponderaram-me a impossibilidade de intervir em casos graves nas circunstâncias aflitivas… e de acordo com os cirurgiões decidi: a) que esses feridos fossem imediatamente transportados para o H.S. n°2; b) que aqueles feridos fossem acompanhados a St-Venant pelo sr. Capitão médico Monjardino; d) que este oficial informasse V. Exa, da situação em que se encontrava o H.S. n°1; e) que o mesmo médico se conservasse em St-Venant a fim de operar ou coadjuvar o pessoal do H.S. n°2 nos trabalhos de cirurgia e executar…

Pouco depois vêm pedir-me com urgência um carro ambulância para retirar um certo número de civis existentes numa cave da rua próxima que estavam mortos de terror pelas explosões ocorridas pouco antes. Mandei lá o carro que me restava, indo nele o sr. Capitão Medeiros d’Almeida, que vigiasse o salvamento desses civis e os conduzisse a lugar seguro pela estrada de Hazebrouck, mas não se distanciando mais do que o necessário visto que eu queria iniciar imediatamente a evacuação do H.S. n°1 para St-Venant.

Assim se fez e deste modo se salvaram uma porção de mulheres e crianças que vibravam de pavor…”.

Decisão é tomada: “Iniciou-se a evacuação com os dois carros que eu tinha ao serviço do meu hospital. Embora a situação fosse apertada, entendi que não devia pedir mais carros a V. Exa, visto que todos eles seriam necessários para o serviço da frente onde as condições eram de certo muito mais aflitivas. Eram cerca de 8 e meia horas. A evacuação continuava quando cerca das 10 horas começaram a afluir ao H.S. n°1 muitos feridos e extenuados. Essa afluência acentuava-se e às 11 horas e meia, eu via claramente que com as duas ambulâncias seriam impossíveis dar vazão a todos os que precisavam de transporte… Cerca das 11 horas chegaram ao H.S. n°1 o sr. Capitão médico Cid C.S.S., duma Brigada de Infantaria (B.I.) e informou-me que a situação na frente estava absolutamente perdida; que o bombardeamento do inimigo cortara todas as comunicações; que o fogo da barragem não permetira acudir às nossas tropas da frente; que se tinham esgotado as munições”.

Mais adiante, o Major continua descrevendo: “Na esquerda do nosso sector, os inglezes tinham cedido, que o inimigo tinha avançado, cercando as nossas forças e que quem não fora morto tinha sido aprisionado, de certo, a essa hora. Acrescentou que o bombardeamento da nossa retaguarda continuava, que Estaires, La Gorgue e Lestrem deveriam estar ocupadas já e que dum momento para o outro chegariam os alemães a Merville entrando pela porta do hospital”.

As horas iam passando, a momentos menos dramáticos ou sentidos como tal sucediam momentos de dúvidas, as informações iam chegando, por vezes transportadas por ciclistas, cuja função era a de transmitirem informações entre diversos setores : “Mas quando recebi as notas de V. Exa. o meu espírito ficou menos confiante; se o Q.G. 2 [ndr Quartel General] retira de Lestrem para St-Venant; se o Q.G.C. [ndr Quartel General do Corpo] retirava para Samer; se V. Exa, não tinha meios de comunicar com a frente; se retirava para Samer e se me determinava que retirasse com todo o pessoal deixando só guarda, é porque a situação era muito séria, havendo talvez movimento envolvente do inimigo cuja onda podia tragar Merville dum momento para o outro.

Com efeito, V.Exa. conhecia melhor a situação de certo, do que eu e a origem das suas informações devia ser mais segura, e coincidiam com as que me dera o sr. Capitão Adolfo Cesar Cid, que tendo chegado ao H.S. n°1 às 10 e meia, era de opinião que os alemães chegariam a Merville dum momento para o outro. Mas por outro lado as informações dos oficiais e praças que chegavam a pé quer em carros, desmentiam em absoluto este modo de ver…

Todo o serviço era feito debaixo dum bombardeamento pausado, metódico, continuo. Um ou dois canhões de grosso calibre, de cinco em cinco minutos a princípio, e depois de trez en trez minutos, lançando uma granada sobre Merville, que ao explodir, produzia um tremor de terra…

Ao sair do H.S. um sargento foi atingido por um estilhaço, teve de voltar amparado por duas praças, coberto de sangue. Examinado, reconheceu-se ser ferimento leve, embora na cabeça. Depois de curado, baixou ao H.S. n°2.

Grande satisfação tenho em dizer a V. Exa, que foi este o único ferido que houve entre o pessoal da minha formação nos dias trágicos de abril.

À medida que avançava o dia, numerosos oficiais e praças iam afluindo ao H.S. n°1, aterrados, e sob influência da excitação intensa que os levavam a julgarem-se doentes. Eram extenuados pelo susto, pela marcha, pelo terrível choque do bombardeamento que não tinha fim…

Informavam que os inglezes na nossa esquerda tinham cedido, que os alemães introduziram-se na brecha, e no ponto de junção deles e dos portugueses tinham cercado os nossos que estavam mortos ou prisioneiros podendo apenas salvar-se os que tinham retirado a tempo. Mas acrescentavam, avançar devagar e apenas chegaram a Laventie que estaria tomada às 14 horas…

Mas as necessidades da frente eram imperiosas. Cerca das 15 horas era recebido no H.S. n°1 um bilhete do sr. Capitão Médico Levi pedindo que uma ambulância fosse ao P.S. de Nouveau Monde onde tinha feridos que precisavam de transporte. Da Amb.7 eu recebia sucessivamente duas comunicações em que me pedia uma auto-ambulância pois tinha feridos graves que era preciso salvar. Estas comunicações desoladoras trazidas por ciclistas indicavam que o serviço da coluna automóvel de transporte de feridos estava desorganizada e que a frente estava desamparada. E eu sem lhes poder valer…

Embora muito me custasse tive de conformar-me com a ideia de que o H.S n°1 já não podia desempenhar o seu papel, pelo menos temporariamente; era preciso sair com todo o pessoal que não fosse necessário e útil…”.

As certezas ou desejos transformavam-se em dúvidas e reviravoltas nas decisões, estratégicas. “Mas pensei que o papel daquela casa lhe não permitia nas condições existentes abandonar os aflitos que chegavam. Depois da tragédia havia muito necessitado que estava chegando, e chegaria nos dias seguintes, cheio de fome e de cansaço e por ventura ferido; havia muito civil que estava correndo ao hospital a pedir socorro para os feridos vítimas do bombardeamento; muitos inglezes feridos chegavam e chegariam enquanto o S.S. inglez se não organisasse…

Nestes termos, julguei que não devia dar cumprimento à ordem de V. Exa de retirar, deixando só guarda e deliberei de acordo com os meus oficiais organizar um P.S. que acudisse a todas essas necessidades enquanto a situação fosse sustentável…”

A retirada, a determinado momento, teve contudo de se fazer: “Ainda me demorei algum tempo colhendo informações dos que chegavam e que julgava de muito interesse. Dadas as últimas instruções para que as primeiras auto-ambulâncias que chegassem partissem logo para Nouveau Monde e Amb.7, dirigi-me para Saint-Venant a apresentar-me no Q.G. 2, contrariado pela falta de transportes, que tantas vezes tinha pedido, aborrecido com o que me parece desorganização do C.A.T.P. [ndr: Combóio Automóvel Transporte de Feridos] e sobretudo profundamente desolado com a sorte dos nossos feridos e médicos na frente, que pediam auxílio, e a quem eu não podia acudir. Muito amargo o dia 9 de abril…

Ao chegar aí ainda mais desolado fiquei pelas novas dificuldades a que me vi. Com efeito sube que além da retirada do Q.G.C., o Q.G 2 jà não estava em St-Venant também como V. Exa me informara e que retirara para Lambris; que o oficial que ficara no Q.G. não recebia correspondência nem satisfazia requisições, limitando-se a indicar o itinerário a seguir… os feridos da frente estavam abandonados, e as ambulâncias n°1 e 7 embarcadas com os seus feridos, dificilmente poderiam retirar, e finalmente ninguém sabia nada do modo como corria serviço sanitário da frente a essas horas”.

O fim do dia do 9 de abril 1918 aproximava-se: “Eram 23 horas; estava a terminar o trágico 9 de abril. Os nossos da frente deviam estar mortos, feridos, aprisionados; ignorava o fim das Amb.1 e 7. O combate continuava, e parecia não ter fim. A noite escurecia.

Os feridos na frente, e viaturas para retirar o material sanitário do H.S n°1, H.S n°2 e Amb. 8 é que preocupava em extremo.

Em St-Venant nada podia fazer. Ir ao Q.G 2 pedir-la, era uma medida urgente. Reunir as auto-ambulâncias, organizar um comboio, e correr a Merville para retirar o material para St-Venant, o que principalmente me preocupava. O arquivo lá estava, e lá estava igualmente finíssimo material cirúrgico que não devia cair nas mãos do inimigo. Nestas condições deliberei retirar para a retaguarda a fim de arranjar elementos para isso…”

Divergências aparecem sobre a conduta a ter nestes momentos trágicos. “Já no dia anterior, e nesse dia de manhã, se tinha acentuado grande divergência entre o Chefe dos S.S. e a minha pessoa com relação ao emprego das auto-ambulâncias na salvação do material sanitário… E por isso voltando a Marthes resolvi, sob minha responsabilidade, determinar que as auto-ambulâncias fossem reunidas, que com elas se constituísse um comboio e que este voltasse a Merville retirasse de lá material sanitário possível, trazendo-o a St-Venant, e voltando de novo, e tantas vezes quantas o permitisse a intensidade dos combates…”.

No dia 11 as preocupações continuam por parte de José Agostinho Rodrigues. “Cheio de impaciência esperei o dia 11, o dia anterior tinha sido perdido, esperava que o dia 11 fizesse trabalho útil… conseguira-se reunir cinco auto-ambulâncias, algumas das quaes tinham chegado às 11 da manhã. A nossa pobreza…

Nenhuma dificuldade foi levantada ao avanço do meu comboio; ao chegar à ponte que dá entrada em Merville vi uma maca com ferido inglez, outros conduzidos pediam auxílio… avancei entrando em Merville e dirigindo-me ao meu H.S. n°1. O meu hospital estava já ocupado por as tropas inglezas destinadas à defesa da cidade.

Não desisti. Apeei-me, entrei no pateo e dirigi-me a um graduado disse-lhe ser o chefe do H.S. e que vinha retirar o material. O inglez respondeu, respeitosamente, que não era possível porque o inimigo estava perto… as auto-ambulâncias corriam risco… Eu via que os inglezes tinham razão… não devia expor a minha gente a esse risco tão grave. Deliberei o retorno, desolado pela perda tão preciosa e tão abundante de material que ia cair nas mãos do inimigo. Mas era preciso e dei ordens de regresso…

A cidade de Merville oferecia um aspecto fúnebre, casas destruídas, janelas, telhados, paredes, tudo em estado deplorável. A cidade cheia de força, dispersas pelas ruas, com movimentos rápidos para evitar os estilhaços, não havia dúvida que se esperava combate iminente. Votei para St-Venant. O meu trabalho e o dos meus companheiros não seria perdido; no H.S. n°2 havia muito material que seria salvo e que devia estar a postos para ser carregado. Eram cerca das 14 horas quando abandonei Merville…”

Outros médicos, outros enfermeiros eram enviados para mais longe. “O guarda que o Sr. Medeiros mandara para Calonne no dia anterior (dia 10) retirara de lá de manhã corrido pelo violento bombardeamento da noite anterior. Apenas o chauffeur Freire se mantivera lá até cerca das 11 horas deste dia (dia 11) curando feridos e dando alimento às forças escocezas que tinham procurado socorro na Amb. 8… Este chauffeur fez belo serviço”

O dia 11 de abril termina-se. “Depois do jantar, cerca das 20 horas, fui falar com o sr. Tenente Coronel Monterroso que me transmitiu uma ordem que altamente me contrariou, a de que tinha de marchar no dia seguinte de manhã (dia 12) com as Amb.1, 2, 5 e 7 para Wimes, em direção à Base. A Amb.6 estacionada em Merville tinha de sair também. A C.A.T.F tinha igualmente de retirar para Samer.

Não havia dúvida. Parecia que tudo se conjugava para contrariar os meus planos de salvação do material sanitário…

Em Wismes acantonou o H.S n°1 de 12 para 13. Em 13 retirou para Courset e lá ficou de 13 para 14… Em 14 retirámos para Hesdigneul, onde ficamos do 14 para o 15. Pedi então algum descanso a Sua Exa o Sr. Chefe do E.M. do C.E.P. para o meu pessoal cansado da marcha depois de exposto em geral pelo serviço, pedido que foi deferido. Nos arredores de Hesdigneul estacionamos em 15, 16 e 17. Em 18 marchámos para Ambleteuse onde ficamos…”.

Depois da descrição do passado sobre o terreno, o Médico Major passa em revista a sua atuação no quarto ponto do seu relatório. “Os meus erros, faltas e omissões: 1° Errei quando não insisti mais do que fiz, perante V. Exa para que do abundante e precioso material do H.S. n°1 fosse retirado a tempo a partir do momento em que não estava a ser necessário; 2° Errei quando não enviei nos primeiros carros os arquivos; 3° Errei em, servindo-me da minha autoridade de oficial mais antigo, não ter retirado do serviço de evacuação em St-Venant as auto-ambulâncias mandando-as para a frente de dia do que resultou irem de noite… indo para adiante poderiam salvar alguns ou muitos dos que ficaram nas mãos do inimigo; 4° Errei em não dar por escrito as instruções que dei verbalmente; 5° Errei em confiar nos chauffeurs das auto-ambulâncias… Enganei-me redondamente, fiquei com a impressão de que os que temos, perdem em geral a serenidade de tal modo, que se tiverem de arrostar um perigo, serão incapazes de ostar a que os carros sofram um desarranjo ou caírem nas valetas. E com a gente assim como podemos fazer serviço quando voltarem os dias tristes, porque hão de voltar?”

Perante este cenário, José Agostinho Rodrigues, tirou as seguintes conclusões: “1° O serviço sanitário no dia 9 e seguintes não manteve entre as suas formações e entre estas e os P.S. as devidas ligações; 2° O serviço de transporte de doentes e feridos, desorganizou-se desde logo; 3° As viaturas hipomóveis distribuídas pelas unidades nada fizeram, perdendo-se quase todas no meio do atabalhoamento geral; 4° Os serviços sanitários estavam abandonados quanto ao auxílio de viaturas para o seu material. Daí se terem perdido mais de 600 contos que poderiam ter sido salvos; 5° Os escassos elementos de transporte foram, julgo, mal aproveitados por falta de direção única. Recebida a tacada dos alemães, as viaturas desapareceram e daí o seu pouco trabalho; 6° O pessoal chauffeur, pelo que conheço, deu em geral poucas provas de valor… este foi um dos grandes males do dia 9; 7° Por estas ocasiões de combates as viaturas marcham em comboios… comandadas pelos médicos das colunas de modo a fiscalizar o serviço; 8° Os nossos carros sanitários e ambulâncias são pouco ligeiros; 9° A falta de elementos de transporte no combate de 9 produziu péssima influência no espîrito das tropas… ficando assim desamparados e a mercê do inimigo; 10° A penúria de viaturas foi tal que nem V. Exa teve meio de comunicar com a frente no trágico dia”.

Seguem-se no relatório do Major Médico as partes referentes às explicações, propostas e recompensas.

Na derradeira página, o Major Médico, José Agostinho Rodrigues, termina: “Julgo não ter errado afirmando que o segui, lhe obedeci, e o procurei honrar tanto quanto possível, procurando o bem do serviço, esforçando-me por manter a dignidade e a honra do nosso serviço de saúde perante o estrangeiro e fazendo em favor dos que caíam, dos aflitos, atribulados e dos interesses da Fazenda. Se é assim, se o consegui, V. Exa o julgará. Junto a este, apresento dezesseis propostas de louvor”.

O documento termina por: “O Chefe do extinto H.S n°1, Tenente Coronel Médico”.

Longa descrição de que cuja pequena parte aqui transcrevemos. Muito ainda haverá a escrever, livros a editar da exploração dos arquivos do A.H.M., de documentos muitos deles não saídos das caixas desde o seu repatriamento para Portugal, finda a Guerra de 14-18.

No que diz respeito ao resumo que aqui foi feito do relatório do médico José Agostinho Rodrigues, carece-nos perguntar: não será próprio das guerras, das batalhas, uma das tarefas do inimigo, de provocar a desorganização de quem se combate em frente? Poderiam ter, no contexto descrito, sido evitados os considerados erros pelo Major José Agostinho Rodrigues?

Resta-nos aqui fazer referência à biografia de guerra de José Agostinho Rodrigues, autor do relatório.

Nasceu no Funchal na freguesia de São Martinho, a um de outubro de 1864, filho de Francisco Rodrigues e Ana de Jesus Rodrigues, já falecidos aquando do embarque do Major em Lisboa, a 22 de fevereiro de 1917, casado com Matilde Carolina H. Rodrigues, pai de uma filha no momento da partida da capital portuguesa, onde residia na rua de S. Bento n°510, 2°Esq.

José Agostinho Rodrigues, formou-se como cirurgião médico pela escola de Lisboa, tendo sido promovido a Tenente-Médico em 15 de novembro de 1894.

Ao embarcar fazia parte do serviço de saúde, sendo seu posto no H.S. n°1 Ambulância 2. De Major-Médico, foi promovido a Tenente-Coronel a 17 de setembro de 1917.

José Agostinho Rodrigues recebeu várias distinções, nomeadamente a Ordem militar de Avis, segunda classe, a 27 de dezembro de 1917.

Depois dos acontecimentos descritos no relatório, foi nomeado Chefe dos S.S. da 1era Divisão a 25 de junho de 1918, um mês depois, a 23 de julho, foi nomeado Presidente da Junta Médica de Inspeção. Nomeado Coronel-Médico no dia 1 de janeiro de 1919, foi abatido dos serviços do CEP a 20 de março de 1919.

José Agostinho Rodrigues recebeu a Medalha comemorativa da campanha de França, foi louvado pelo “muito zelo, dedicação, inteligência demonstrada na organização e direção dos serviços como Chefe inspetor das tropas e pelo trabalho de La Lys ao levantar o nível das tropas prestando assinalável serviço ao CEP e à Pátria”.

Foi decorado pelo rei Georges de Inglaterra como Comendador da Ordem de Saint Georges e Croix de Guerre avec étoile vermeil pela França.

José Agostinho Rodrigues, depois de finda a guerra, desempenharia o posto de Subdiretor da Direção geral dos Serviços Médicos do Ministério da Guerra.

Escreveu em vários jornais Funchalenses, autor de publicações, nomeadamente o trabalho “As questões vinícolas e sacarinas da ilha da Madeira” datado de 1927.

O Coronel José Agostinho Rodrigues faleceu em Lisboa a 14 de abril de 1938.