Home Entrevistas Luísa Semedo: vencedora do Prémio Literário e de Ilustração Eça de QueirósNuno Gomes Garcia·27 Julho, 2017Entrevistas “Uma educação que promova a empatia é essencial” Luísa Semedo, Conselheira das Comunidades Portuguesas, eleita por Paris, antiga Presidente da CCPF, doutorada em Filosofia e ativista política, fará o lançamento público da coletânea de contos, intitulada “Os Desafios da Europa: Racismo, Emigração e Refugiados”, onde se inclui o seu conto vencedor – “Céu de Carvão, Mar de Aço”. O evento, a decorrer na Casa de Cultura dos Olivais, em Lisboa, no dia 28 de julho, contará também com a presença dos restantes autores que participam na obra. O conto de Luísa Semedo – que narra a viagem de Kimia Benda-Nzuji desde a República Democrática do Congo até à Europa, fugindo da guerra e naufragando na travessia do Mar Mediterrânio – serve de ponto partida para uma longa conversa que aborda questões tão na ordem do dia tais como o racismo em Portugal e na Europa, a crise dos refugiados e a herança que a colonização portuguesa legou às novas gerações lusófonas. Tu és uma ativista de muitas causas. Compreendi que o título do teu conto vai muito além do lirismo das palavras que o compõem. Podes explicá-lo? Enquanto dirigente associativa estive envolvida em alguns projetos europeus com outras associações europeias em França. E pude constatar a mudança radical entre os primeiros projetos e os seguintes. No início, estávamos unanimemente otimistas e voluntaristas em relação à União Europeia, mas em pouco tempo tudo mudou. No início, nem nos parecia relevante a questão da pertinência da UE, estávamos mais preocupados com questões de cidadania, como por exemplo campanhas de participação eleitoral. E, depois, as nossas preocupações começaram a girar em torno de como convencer os cidadãos de que a UE era algo de positivo, porque, no fundo, muitos de nós deixámos de acreditar que a atual UE fosse defensável. Estamos longe do discurso fundador da CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), percussora da UE, proferido por Schumann em 1950 e que defendia que a produção de aço e carvão deveria ser “oferecida a todos os países do mundo sem distinção” e que uma das funções essenciais da CECA era o desenvolvimento do continente africano isto sob fundo de um discurso em favor da paz e da criação de uma comunidade alargada. A crise dos refugiados foi e é uma vergonha para a UE, é a parte visível de uma decadência moral a que se juntam o crescimento dos populismos e extremismos. Achei, portanto, interessante pegar nesses materiais que à partida seriam positivos, o carvão e o aço, para substanciar de forma negativa o céu e o mar que são omnipresentes na viagem de barco dos refugiados. Então, o título que escolheste, e o próprio teor do conto, tem uma crítica implícita à maneira como a União Europeia, como um todo, tem lidado com a questão dos refugiados. Consideras que os países que mais resistem em relação a receber e apoiar refugiados reagiriam da mesma maneira se os refugiados fossem brancos e cristãos? Em relação à crise dos refugiados, a União Europeia é desumana e não está a cumprir os acordos internacionais. Ou seja, quer do ponto de vista ético como da justiça, está a falhar seriamente, e isto não somente com os refugiados, mas também em relação aos países limítrofes da UE que suportam praticamente sozinhos esta crise, sem contar com o acordo, no mínimo, dúbio com a Turquia de Erdogan. A UE tem meios para resolver esta questão e por vezes só não o faz por questões eleitoralistas, pensando que os cidadãos são todos racistas e intolerantes e que não vão saber ser generosos, ora isto é falso. Muitas vezes depende da maneira como os próprios dirigentes tratam a questão, se nos seus discursos apelam ao que há de pior ou de melhor em nós. Eu moro perto de um dos dois centros de refugiados geridos pela Câmara de Paris e não houve manifestações sem fim, ataques aos refugiados, construção de muros pelos residentes da cidade como em outras localidades. Tudo correu naturalmente porque as autoridades locais souberam gerir a situação, souberam por um lado meter os meios necessários para que o centro funcionasse convenientemente e souberam apelar à hospitalidade dos residentes. E, sim, há infelizmente graduação nas intolerâncias segundo o grau de melanina e as crenças ou culturas diferentes das nossas, mas isso é válido em todos os domínios da sociedade, não somente quando se trata de refugiados. Estamos acostumados a encarar o racismo como algo de via única – um complexo de superioridade sentido pelo branco cristão europeu, ou de origem europeia, em relação ao negro, ao norte africano, ao cigano ou ao sul-americano. A teu ver, existe um racismo recíproco, ou seja, por exemplo, um complexo de superioridade do negro que inferioriza o branco? Essa questão é agora recorrente. Lembra-me quando estou a falar de violência doméstica e me perguntam “então e os homens que são vítimas?” numa tentativa desesperada e por vezes com alguma chicoespertice de inverter a situação através do exemplo da árvore que esconde a floresta. Existem estudos em psicologia cognitiva, alguns controversos, que demonstram que somos por razões contextuais todos mais ou menos racistas, que temos preconceitos em relação ao Outro que são muitas vezes inconscientes. O problema é quando esses preconceitos são utilizados por pessoas de autoridade ou que podem influenciar a vida dos indivíduos, como os polícias, juízes ou médicos, sem falar de quando esses preconceitos se transformam em ódio e em violência. Mas não há qualquer tipo de reciprocidade quando tens de um lado quem detém o poder, quem oprimiu e que precisamente pôde guardar o poder graças a essa opressão. Existiria reciprocidade ou o chamado “racismo inverso” se houvesse igualdade absoluta. Ora, não é o caso, de um lado tens um racismo supremacista, que inferioriza o Outro, que o desconsidera, que o trata como um animal e no outro tens reações de defesa e de ressentimento. O “racismo inverso” é uma distração do verdadeiro problema que é um racismo alicerçado em resistentes estruturas quer sejam sociais ou económicas e que ainda hoje se fazem sentir. Os refugiados são oriundos de países em guerra, muitos deles, tanto no Médio Oriente como em África, vivem um caos provocado pela emergência do Daesh e de grupos similares. Na tua opinião, quais as razões históricas, exógenas e endógenas, que fomentaram o atual poderio dessa espécie de fascismo islamista? Seria longo demais explicar aqui todas as razões, até porque o que se vive no Médio Oriente ou em África tem causas complexas e díspares, mais ou menos antigas, exógenas e endógenas. Eu sou pelo intervencionismo. Participei, por exemplo, na manifestação por Timor, à porta da Embaixada dos EUA em Lisboa, porque acredito na ingerência humanitária. Temos, enquanto comunidade internacional, uma responsabilidade para com os povos que são oprimidos, que são vítimas de violência e de condições de vida inumanas. Temos um dever de intervenção, não somente no próprio país, mas também em acolher as populações exiladas. Mas o que está a acontecer é que estamos a apagar fogos criados por nós, e a intervir por razões não humanitárias e de estratégia geopolítica de forma insensata com repercussões desastrosas para aqueles que pretendemos defender. A protagonista do teu conto tem uma certa admiração pelas viagens exploratórias portuguesas do século XV. Ora, foi esse o dealbar do processo de colonização que levou à sangria do tráfico negreiro que durou 400 anos. Como saberás, em Portugal, mas também no Brasil, por exemplo, ainda se discute muito o eventual excecionalismo da colonização portuguesa. Qual a tua opinião? Consideras que o colonialismo português “não foi tão mau” como o levado a cabo por outras potências europeias? A Kimia é congolesa e é uma doutoranda na Universidade de Kinshasa a fazer uma tese sobre Diogo Cão e tem um fascínio, eu diria técnico, pelas viagens dos Portugueses. Ela acha curioso que um país tão pequeno e que não é propriamente uma potência económica tenha sido capaz de tais feitos marítimos. Mas esse fascínio acaba aí, ela tem a noção da desgraça que foi a colonização e a escravatura, e vai estabelecer um paralelo entre as viagens de barco dos escravos e a sua própria viagem enquanto refugiada. Não há excecionalismo da colonização portuguesa só porque os Portugueses, ao contrário de outros, acharam por bem copular ou violar negras. A miscigenação que é um dos argumentos de peso das teorias luso-tropicalistas está manchada de violência. Como diria Elisa Lucinda em “Mulher Exploração”, “Porque deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata!” O colonialismo não foi um encontro de culturas e nem os Portugueses têm um pendor natural para o encontro com outros povos onde estão ausentes conceitos de superioridade e de discriminação racial, como dizia Salazar. O colonialismo é uma relação de poder em que se subjuga, a maior parte das vezes pela violência, outro povo. Sim, o conceito de superioridade esteve presente em todas as colonizações europeias, nomeadamente na portuguesa. Era um dos paradigmas da época. Mas, é um facto, que a colonização portuguesa instrumentalizou a miscigenação como maneira de compensar o défice de capital humano de Portugal, problema que outros países europeus mais populosos não tinham. Ou seja, o facto de os Portugueses terem fomentado a criação de uma sociedade mestiça, mulata e cabocla, como forma pensada e, digamos, interesseira de povoar territórios gigantescos e, logo, perpetuar a colonização, não consiste – deixa-me insistir – numa exceção quando olhamos para a globalidade das colonizações europeias? Não terá sido essa característica que deu, por exemplo, origem ao Brasil e, o seu contrário, a não miscigenação britânica ou holandesa, ao Apartheid sul-africano? A tua pergunta reforça a minha resposta anterior. A miscigenação não foi concebida por razões altruístas e foi feita à custa de crimes. O conceito de superioridade não é um paradigma exclusivo daquela época. É um paradigma, ainda hoje, extremamente presente em sociedades profundamente desiguais como, por exemplo, a brasileira onde perdura um apartheid implícito entre ricos e pobres, sendo que grande parte desses pobres são negros. Portanto, há diferenças, sim, entre as colonizações europeias mas estas diferenças tanto no modus operandi como nos efeitos não me levam a concluir que “o colonialismo português não foi tão mau”. A imposição e a barbárie foram instrumentos comuns assim que o seu efeito na produção de desigualdades estruturais que ainda perduram. Então, a teu ver, Portugal é um país intrinsecamente racista ou “apenas” um país que tem no seu seio uma franja de gente racista que, sinal dos tempos, começa a perder a vergonha e a dar a cara? Portugal é um país onde o racismo, como a homofobia e o sexismo, estão presentes quotidianamente. Ou seja, um negro, um cigano, um gay ou uma mulher sente ainda demasiadas vezes o peso de ser considerado diferente, inferior ou anómalo. A linguagem descomplexada é muito utilizada em Portugal, ainda mais do que em França. E as leis progressistas, por exemplo, em relação aos cidadãos LGBT, não são garantias de não discriminação no dia-a-dia. Jovens continuam a ter medo de dizer aos pais que são gays com medo de serem postos na rua e negros ou ciganos continuam a ser discriminados no acesso ao alojamento ou ao emprego. As recentes polémicas sobre a violência policial na Cova da Moura vieram demonstrar a extrema resistência que tem Portugal em olhar para si próprio. A retórica luso-tropicalista que já encontrávamos em relação ao nosso comportamento durante a colonização, continua nesta questão com várias vozes, inclusive à esquerda, que, metendo a cabeça na areia, respondem que Portugal não é tão racista como outros, como se isso desculpasse o que quer que fosse ou fosse solução para os problemas. O que explica, então, a ausência de movimentos xenófobos e racistas fortes em Portugal? Não existe país na Europa que não tenha o seu Partido racista com um considerável peso eleitoral. Por que razão o discurso racista do PNR (Partido Nacional Renovador) em Portugal não tem impacto? Há vários fatores. Saímos há pouco de uma ditadura, ainda é uma parte da nossa História que faz parte de maneira profunda do nosso consciente coletivo, sabemos bem que esses Partidos têm uma componente fascizante no seu discurso, o que em Portugal causa ainda urticária. Depois, os Portugueses de origem estrangeira não têm, na sua grande maioria, uma religião diferente e as segundas gerações defendem ser Portugueses, eu por exemplo sou filha de pai caboverdiano naturalizado português e não tenho qualquer dúvida sobre o facto de ser portuguesa. O mesmo não se passa em França, onde se ouvem crianças que já fazem parte da terceira geração de Franceses de origem estrangeira e identificam-se com a nacionalidade dos avós. Ou seja, as relações são mais pacíficas, menos tensas. Mas para mim é uma questão de tempo, se não aprendermos com o que se passa nos outros países, se não soubermos gerir as tensões, se não criarmos espaços de expressão, de ascensão social, de representação para essas populações, se não tratamos as questões de pobreza e de desigualdade social que levam também à procura de bodes expiatórios, a paz social estará em perigo. O que se passa com a questão da violência policial da Cova da Moura é o exemplo-tipo, as autoridades não estão a saber gerir esta situação, quer seja o Governo, quer seja a Polícia enquanto instituição. Servem-nos silêncio ou declarações que só podem por lenha na fogueira. Portugal não está de todo imune a uma subida dos extremos. Tu és doutorada em Filosofia e a tua tese de doutoramento aborda a problemática da empatia. Ora, a questão dos refugiados é, acima de tudo, uma questão de falta (ou não) de empatia. O que é que leva a que certos Europeus sejam incapazes de sentir empatia por aqueles que fogem da guerra e da fome? A questão da empatia é central e complexa. O que defendi na minha tese é que a empatia é o fundamento dos nossos comportamentos éticos, é a nossa capacidade de sentir o que o outro sente (empatia emocional) e de se meter no lugar do outro (empatia cognitiva) que nos permite uma maior identificação. Ora quanto mais nos identificamos, mais somos compelidos a ajudar. Porque sofremos de facto com o sofrimento dos outros. Os carrascos, as pessoas que participaram ativamente em genocídios passaram muitas vezes por técnicas de dessensibilização em que deixaram de considerar o outro como um ser humano, deixando de se considerar a si próprios também. Muitas vezes dão nomes de animais aos inimigos como por exemplo de animais rastejantes como baratas, ratos ou serpentes, porque é uma maneira de excluir o Outro da sua esfera humana. Ora, uma cor ou religião diferente são fatores que não ajudam à identificação. Também existem fenómenos de impotência… – “não sei como ajudar”, sinto-me incapacitada para resolver uma situação que me parece grave e que me faz sofrer – vou então criar barreiras de proteção que passam também pela dessensibilização, por ignorar o Outro ou imputar-lhe a culpa pela sua situação. Não somente para esta questão, mas para o ideal de uma vida em conjunto pacificada, uma educação que promova a empatia é essencial, é aliás essa, de forma muito resumida, a conclusão da minha tese.