Memórias inéditas de um oficial português nas trincheiras em França

Portugal entrou na I Guerra Mundial «sem preparação moral», testemunha um oficial que integrou o Corpo Expedicionário Português e que descreve, nas suas memórias, a vida nas trincheiras lamacentas em França, «sepulturas em vida».

As trincheiras eram um «labirinto de valas lamacentas», ligadas por postos que, à noite, se fechavam com arames farpados, transformando-se «numa espécie de sepulturas em vida», descreve o capitão António Joaquim Henriques, que integrou a 1ª Divisão do Corpo Expedicionário Português na I Guerra Mundial.

O relato inédito do capitão António Joaquim Henriques, que morreu em 1979, foi publicado pela Revista Militar, que já publicou na primeira edição de 2014 o testemunho do mesmo oficial sobre a revolução de 5 de Outubro de 1910.

O capitão tinha 28 anos quando embarcou para França como Alferes comandante de um pelotão do Regimento de infantaria nº 28, da Figueira da Foz, e combateu nas trincheiras francesas entre 26 de fevereiro de 1917 até ao fim da guerra, regressando a Portugal em julho de 1919.

Nas suas memórias, recuperadas por um familiar, o oficial começa por observar que os Partidos políticos estavam divididos quanto à participação portuguesa e que isso refletia-se na «moral da tropa».

«Justo é dizer que Portugal foi para esta guerra sem preparação moral e que muitos não viam explicação suficiente para nela tomarmos parte, a começar pelos Partidos políticos. Por exemplo, o democrático que era chefiado pelo dr. Afonso Costa, era intervencionista, mas já não pensava assim o do dr. Brito Camacho», mais à direita, observou. «Estas divergências, e para mais políticas, tinham como não podia deixar de ser efeitos desastrosos na moral da tropa», considera.

Entre os episódios que o marcaram, o Capitão refere a morte do primeiro soldado português na I Guerra Mundial, António Gonçalves Curado, do seu regimento, na primeira visita das tropas portuguesas às trincheiras, a 4 de abril de 1917. «O batalhão deu entrada nas trincheiras debaixo de forte bombardeamento inimigo, talvez por terem presenciado a nossa chegada dos seus observatórios que constituíam uma fileira de espias constantemente alerta, ao longo das trincheiras alemãs. O soldado Curado ia no meu pelotão que lhe pertenceu tomar posições na 2ª linha, que estava guarnecida por tropa inglesa», recorda.

«Não tenho a pretensão, nem é possível narrar todos os acontecimentos dignos de menção que presenciei nas trincheiras durante todo o tempo que por lá permaneci, limitando-me apenas a referir algumas passagens que ficaram em recordações», justificou.

De entre todos os inimigos, «o mais repelente e traiçoeiro» por mais vítimas provocar, era o morteiro ligeiro ou, no jargão dos militares, a «célebre e peçonhenta» «garrafinha de litro», diz.

«Pelas 16h20 do dia 13 de setembro de 1917, no posto de Cockspur (nº 4), sete soldados de guarnição de metralhadoras comentavam a imprudência de se reunirem em grupo para comerem o seu rancho. Mas mão inimiga lembra-se de, àquela hora, começar o antipático frete. Em má hora o destino os reuniu pois um malandro caiu-lhes em cheio, matando-os a todos», relata.

Uma das «rotinas» nas trincheiras era a saída para as patrulhas da noite, viagem «ultra tenebrosa em que tantas voltas se dava que a certa altura já não se sabia para que lado ficava o inimigo».

António Joaquim Henriques alude à exaustão do Corpo Expedicionário Português, a «única tropa que não era rendida ao fim de tantos meses de frente» ao contrário de Ingleses e Franceses que «tinham as suas licenças e rendições».

«Que não havia barcos para levar a tropa de Portugal, diziam uns; que o Governo não enviava mais ninguém, diziam outros», refere.

«Certo é que o CEP, velho, como já os soldados designavam a tropa da 1ª Divisão por ser só ela que guarnecia a 1ª linha de trincheiras, se achava bastante desfalcado, devido às baixas causadas durante um ano em que se encontrava na frente de combate. Mas enfim, antes tarde que nunca, e então lá apareceu um dia a 2ª Divisão a render-nos», relata.

Com 40 anos na altura em que passou a escrito as suas memórias, o Capitão afirma ter aprendido que «um homem perde muito do seu equilíbrio, bestializa-se mesmo, desde que lhe metam uma arma na mão».

 

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