Nuno Gomes Garcia conversa com Catarina Janeiro: «Não queria separar-me destes personagens»

Catarina Janeiro nasceu em Abrantes em 1979 e é psicóloga. O seu primeiro livro, “Outubro Negro”, enquadra-se num género pouco explorado pela literatura lusófona: o horror.

“Outubro Negro” narra-nos a história de Albano que, num mês de outubro, claro está, perdeu Augusto, o seu melhor amigo, num incêndio numa serração. Se bem que Augusto tivesse mudado com os anos, tornando-se uma pessoa despeitada, a morte do amigo deixou Albano muito afetado. Pior ainda ficou quando, meses mais tarde, perdeu Glória, a sua namorada de sempre.

Albano então abandona o lugar onde vivia, cheio de memórias dolorosas, e vai para a cidade, tornando-se médico no Asilo Psiquiátrico de Todos-os-Santos. Homem solitário, Albano dedica-se por inteiro à sua profissão. Até ao momento em que o seu passado o começa a assombrar através de fenómenos sobrenaturais e inexplicáveis.

Um belo livro, repleto de suspense, arrepiante por vezes. Um enredo que fica em aberto e que é fechado pela sequela que acabou de sair com o título de “O Hospital de Todos-os-Santos”.

 

Catarina, já te ouvi dizer que o “Outubro Negro” é um livro carregado com muitos dos ícones daquilo que é o horror na Literatura. Que ícones são esses?

Refiro-me a tudo aquilo que acaba por ser o mais conhecido na literatura de terror e de fantástico. As referências cinematográficas que vamos tendo daquilo que é o horror. Quando escrevi este livro, fi-lo numa perspetiva de realização pessoal, de conseguir colocar nele todos aqueles ícones que a mim me foram apaixonando nos livros que fui lendo, nos filmes que fui vendo. De alguma forma, eu queria conseguir fazer uma mistura de tudo isso e que criasse uma grande intensidade, conseguindo provocar, até do ponto de vista visual, essas sensações às pessoas que o estão a ler.

 

No livro, torna-se claro que os fantasmas do passado renascem com o sofrimento de Albano. Tu, enquanto psicóloga, mas também enquanto escritora, como é que explicas isso? Como explicas que o sofrimento desperte traumas aparentemente esquecidos e ultrapassados?

Eu faço uma distinção, que apesar de ser um bocadinho artificial, faz sentido. Aquilo que é a minha profissão, que acaba por ser algo muito mais científico e clínico, e aquilo que é o meu imaginário, o que eu escrevo. No entanto, a reflexão que eu vou fazendo de tudo o que experiencio na minha vida profissional acaba por me levar a refletir sobre essa questão. Cada um de nós vai ao longo da vida acumulando fantasmas do passado. Às vezes, são fantasmas bastante coloridos e agradáveis e, outras vezes, são fantasmas muito pesados. Tudo isso acaba por nos condicionar na nossa vida do presente. Portanto essa ligação que há entre as nossas memórias, a forma como nos construímos enquanto pessoas e que escolhemos fazer com isso. No fundo, é essa a ideia que eu tento transmitir: as escolhas que nós fazemos com aquilo que nos acontece acaba por determinar os nossos fantasmas.

 

Bem, aproveito que estou a falar com uma psicóloga e vou transformar esta entrevista numa espécie de ida grátis ao consultório… Bem, eu parto do princípio, porventura estarei errado, de que o sobrenatural não existe. Por isso te pergunto: que tipo de mecanismos mentais são postos em marcha na mente das pessoas que julgam estar perante algo de sobrenatural?

Essa é uma pergunta muito complexa, mas eu vou tentar responder de uma forma simples e concisa. Podemos estar aqui a falar de duas ordens de coisas. Podemos estar a falar, por exemplo, de uma doença mental grave. Neste caso, existem pessoas, cujo cérebro não está a funcionar da mesma forma que as outras pessoas, que veem e ouvem coisas que não existem. Que é aquilo que acontece nas psicoses. Nessas situações, essas pessoas acabam por interpretar essas alucinações como algo de sobrenatural. Essa é uma forma portanto de percebermos como é que o sobrenatural entra nas nossas vidas. O nosso cérebro é pródigo em criar imagens e pensamentos e interpretações de coisas que efetivamente não estão lá. Este é então um dos lados da situação.

 

E o outro lado?

O outro lado, que já entra nas profundidades daquilo que nós somos, tem a ver exatamente com a acumulação de dor e de sofrimento, e de como isso, às vezes, até através de alguns mecanismos de defesa, pode ser projetado de outra forma. Por exemplo, um acontecimento de vida muito traumático pode levar-nos a criar fantasmas que podem ser muito reais na nossa vida. Esta questão do sobrenatural é muito importante, sobretudo quando falamos de problemas de saúde mental. É uma problemática que anda sempre muito na ordem do dia, porque muitas das pessoas com problemas de saúde mental têm crenças muito específicas e até bizarras sobre aquilo que é o sobrenatural.

 

Vamos falar um pouco mais sobre o trabalho literário. Acaba de sair “O Hospital de Todos-os-Santos, a sequela deste “Outubro Negro”.

Eu quando escrevi o “Outubro Negro” fiquei apaixonada por estes personagens. Quando o terminei pensei que não queria separar-me destes personagens. Até porque eles continuavam a ater uma vida muito intensa dentro de mim. Então achei que até de acordo com o perfil das próprias personagens havia uma série de coisas por explorar, uma série de acontecimentos que eles mereciam viver. Este novo romance surge nessa linha. É uma obra em que o sobrenatural e os ícones do horror estão lá, sem dúvida, mas talvez lá estejam espelhados de outra forma. Exatamente aquilo que estivemos a falar anteriormente: as nossas inquietações enquanto seres humanos, as questões que se nos colocam. Qual é a fronteira entre aquilo que é doença e aquilo que é crença? É uma obra que, apesar de ter uma história, um enredo, ação, tem como objetivo também confrontar-nos com estas questões mais profundas da nossa existência. Isto, claro, sem querer parecer pretensiosa.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

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Quarta-feira, 14 de novembro, 9h30

Domingo, 18 de novembro, 14h25