Nuno Gomes Garcia conversa com Gabriela Ruivo Trindade: “Sinto que escrevi um livro inacabado”

A viver em Londres, Gabriela Ruivo Trindade (vencedora do Prémio Leya 2013 e do prémio PEN Clube Português 2015 para Primeira Obra – ex-aequo – com o romance «Uma Outra Voz») tem-se dedicado à promoção da literatura infantil escrita em português. Além de ter publicado «A Vaca Leitora», um livro para crianças, ela é também a gestora de uma loja online – a «Miúda Children’s Books» (https://www.miudabooks.co.uk/) – especialmente orientada para os lusodescendentes espalhados pela Europa. É igualmente autora do blogue http://gabrielaruivo.blogspot.co.uk/

«Uma Outra Voz» inspira-se na vida de João Francisco, um seu familiar alentejano – o tio-avô da sua avó – e que percorre várias gerações, desde os anos 20 até ao 25 de Abril de 1974. Na verdade, o enredo é apresentado ao leitor pela voz de cinco personagens, vivendo todos em épocas diferentes, misturando as histórias da família com a História do século XX português, com especial incidência no Estado Novo.

 

Gabriela, ao ler o teu livro, fiquei sempre com a sensação de estar a ler livros diferentes. Ou seja, a «voz» de cada um dos personagens é tão diferente das outras que se fica com essa impressão. Também sentiste isso quando estavas a escrever o livro?

Sim. Aliás, é curioso que digas isso porque vem perfeitamente de encontro ao que eu senti quando estava a escrever o livro. Na verdade, quando terminava uma «voz» – eu escrevi o livro mais ou menos de seguida – tinha a sensação que tinha terminado um livro.

 

Que estranho…

Era mesmo. E até precisava de um tempo entre as «vozes» para depois conseguir passar para a «voz» seguinte. Sabes, aquele livro teve tantos finais… Quando o acabei de escrever – foi o primeiro livro que terminei na vida, apesar de escrever desde criança – estava à espera de sentir uma coisa extraordinária, como toda a gente diz que sente quando termina o primeiro romance. Só que não senti nada porque já o tinha terminado várias vezes.

 

Tu terminaste esse livro cinco vezes então?

Sim. Quer dizer, foi um livro que se foi terminando e recomeçando várias vezes. Por outro lado, é muito interessante esta ideia, eu encaro este livro como algo aberto. Sinto que escrevi um livro inacabado. Eu poderia escrever mais “vozes”. Iria ter sempre histórias para contar. A minha família tem histórias intermináveis. É um poço sem fundo.

 

No teu livro, tu misturas a fotografia, a genealogia, a escrita… Tiveste a consciência desde o início da originalidade do livro?

Não. Eu também não considero essa parte assim tão original. O que me parece mais original, aliás o júri salientou isso, foi a estrutura e a maneira de contar um pouco diferente do habitual. O facto de focar o livro numa personagem que não está no centro; esta ideia de a personagem central do romance não ser o centro, ser um centro deslocado, digamos assim, que nunca chegamos a alcançar.

 

Que é o personagem João Francisco?

Sim, exato. E talvez essa estrutura seja o mais inovador no livro: uma estória contada a partir de pequenos momentos – como se fossem janelas – da vida das personagens, e toda a estória já passou, já não está ali, é simples recordação. Por outro lado, o facto de cada «voz» ser um olhar diferente da mesma paisagem, o tal centro que nunca chegamos a alcançar. Os outros elementos que referes, a genealogia por exemplo, adveio da prática. Quando estava a escrever o livro, eu precisei da fazer uma árvore genealógica. Tinha tantas personagens que me chegava a perder. A genealogia serviu para me ajudar. Quando cheguei ao fim, verifiquei que aquilo fazia todo o sentido para auxiliar o leitor. Então, eliminei as partes que escrevia sempre que introduzia uma personagem no texto, em que tinha de explicar quem era, de quem era filha… e concluí que aquilo não fazia sentido. O livro pretende reproduzir o pensamento na cabeça das pessoas, e nós quando estamos a pensar e nos lembramos da prima Joaquina…

 

Sim, não nos vamos pôr a pensar que ela é filha de tal e tal.

Entendes? Então não fazia sentido e achei que deveria incluir a genealogia também por esse motivo. Já as fotografias foi uma outra história, visto ser a única parte do livro que é real. Achei que as tinha de incluir como testemunho da realidade, mas também para brincar com essa realidade, misturando-a com a ficção, que é afinal o propósito do livro.

 

Gabriela, o Prémio Leya já teve oito vencedores e tu foste até agora a única mulher a vencê-lo. A que se deve essa discrepância na tua opinião?

Não te sei responder. Estamos perante um concurso que é anónimo, concorres com pseudónimo.

 

Claro, não se sabe se o autor de tal livro é homem ou mulher.

Sim, o júri à partida não sabe.

 

Haverá então mais homens a escrever?

Isso é capaz de ser verdade. Porque para as mulheres é muito mais difícil escrever… por uma série de razões.

 

Que razões apontas?

As mulheres têm tanta coisa para fazer. Tarefas relativas à família e à casa, que ainda estão muito concentradas nelas. A meu ver, os homens têm sempre uma disponibilidade diferente. Aliás, eu lembro-me de uma pergunta que uma jornalista me fez quando ganhei o Prémio e que na altura me fez rir. Ela disse que um dos anteriores vencedores do prémio lhe referiu que às vezes a mulher saía com os filhos para o deixar escrever e perguntou-me se comigo tinha acontecido o mesmo.

 

Eu lembro-me de quando venceste o Prémio, nós ainda não nos conhecíamos, de ficar muito irritado com a abordagem dos jornalistas e dos media à tua pessoa. Eles não se focalizavam no valor da tua obra, mas sim no facto de seres uma emigrante desempregada na altura. Não te sentiste incomodada com isso?

Sim, Nuno, incomodou-me bastante. Não era por dizerem que eu estava desempregada que me incomodava, isso era um facto.

 

Sim, mas isso era um detalhe. E os jornalistas, como fazem tantas vezes, transformaram o detalhe em algo do mais relevante.

Exato. O que me incomodou mais foi a forma como isso foi evidenciado. E mesmo nos títulos dos artigos. Estavam a dar relevância a um facto que não tem assim tanta importância.

 

Fala-nos desta da tua paixão pela literatura infantil e no novo projeto que tens em mãos.

A «Miuda Books», que é a livraria online que neste momento estou a dirigir, já existia. É um projeto que foi iniciado por uma amiga minha, a Carla Cruz, aqui em Londres, e que vende livros de literatura infantojuvenil escritos em português. Temos livros de Portugal, do Brasil e de Cabo Verde.

 

E podem enviar para França se alguém encomendar?

Sim, claro. Vendemos para todo o mundo.

 

Gabriela, para terminarmos, aconselha-nos um livro.

Gostei muito do «Ema» da Maria Teresa Horta, foi o último livro que li que mais me encheu as medidas.

 

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado:

Quarta-feira, 18 de abril, 8h30

Domingo, 22 de abril, 14h25

 

 

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