Nuno Gomes Garcia conversa com Gonçalo Nave: “Existe uma certa instagramização da vida”

Gonçalo Naves, 21 anos, estudante de Direito, é talvez um dos mais jovens autores portugueses a ver os seus romances publicados. No final do ano passado, o seu segundo romance, “É no peito a chuva”, foi a obra escolhida por Joaquim Gonçalves e Dina Silva – proprietários de A da Artes, uma livraria de Sines que se tornou numa das referências culturais do Alentejo – para inaugurar a atividade editorial de A das Artes Editora.

“É no peito a chuva” é um romance denso, arriscado até, dado o seu estilo complexo, que estica a língua portuguesa aos limites. E, por tudo isso, não é um romance convencional, de estrutura linear, que se foca no enredo e nos personagens. O Gonçalo, pelo contrário, dá menos importância ao conteúdo narrativo e entrega a primazia à linguagem poética, extraindo dela personagens como Francisco França e Joana Alexandra entre muitos outros. Personagens que habitam espaços fragmentados e que exploram a dicotomia campo-cidade.

“É no peito a chuva” é um romance quase experimental que denota duas coisas: uma enorme reflexão ao longo do processo criativo, da escrita propriamente dita, e um trabalho de leitura dos grandes autores de língua portuguesa, raro em alguém tão jovem.

 

Gonçalo, quem começar a leitura do teu livro, nota imediatamente algo estranho. A numeração dos capítulos estão por ordem decrescente. Começa em dezoito e termina no um. Explica a quem ainda não leu o livro qual foi a tua intenção ao fazê-lo.

Explicar a minha intenção é arriscado… mesmo que dissesse aquilo que tentei fazer, quando alguém fosse ler o livro poderia ter uma ideia completamente diferente e discordar comigo. Por acaso, já me perguntaram se deveriam começar a ler da capa para a contracapa, do 18 para o 1, ou ao contrário, da contracapa para a capa, do 1 para o 18. Bem, a minha sugestão é que o livro seja lido da capa para a contracapa, em contagem decrescente. Depois de feita essa leitura se eventualmente o leitor quiser arriscar uma leitura inversa… Os meus objetivos foram muito pessoais, digamos, e acho que cada pessoa depois de ler o livro os irá perceber.

 

No fundo, o leitor tem de tomar propriedade do livro. É isso que queres dizer?

Exatamente.

 

A linguagem é o coração deste teu romance. Quando li o livro, fiquei tão aprisionado na linguagem que quase esqueci o enredo. Sendo tu jovem… eu não quero focar a entrevista na tua juventude, mas é um facto relevante para o caso, julgo… de onde te vem então essa capacidade de manusear a língua? Achas que as leituras que já fizeste tiveram uma importância grande nessa tua capacidade?

Sem dúvida que foram as leituras que fiz. Essa pergunta é-me muito feita pelos mais jovens nas escolas que visito. No fundo, eles querem trazer à colação aquela ideia de inspiração, quase como se fosse um desígnio de criação divino que se abate sobre a pessoa que está a escrever e faz com que ela escreva…

 

Da maneira como falas parece que não acreditas na inspiração e no talento…

Não, não, vamos lá ver…

 

Eu não acredito em nada disso.

Não é questão de não acreditar, é questão de não conhecer. Como eu não conheço e não sei como é que funciona, não gosto de fazer grandes reflexões e grandes dissertações a esse respeito. O que eu conheço, e que sei que acontece, é o trabalho.

 

Sim, é isso mesmo.

Exatamente… É o trabalho que nós temos a escrever, a apurar e a ler, obviamente que sim. A leitura acaba por ser o combustível da escrita. E a propósito daquilo que dizias sobre o enredo e a menor importância do enredo e dos personagens…

 

Não disse que a importância era menor, disse que se fica tão absorvido na linguagem que se lhe presta mais atenção do que ao resto. Compreendes?

Sim, sim. A esse respeito, se nós olharmos para os livros que, por algum motivo, nos marcaram em alguma fase da vida e foram importantes, nós abstraímo-nos do enredo e aquilo que faz o livro é o que está além das personagens e além do tempo e além do espaço. Vamos supor… No “Memorial do Convento” temos o Baltazar e a Blimunda, mas poderiam haver outros. Aquilo que interessa está muito além do enredo. É uma perspetiva muito própria, não sei se será a mais correta, mas é a minha…

 

Tu nasceste nos finais dos anos 90, cresceste portanto com a internet e a massificação dos aparelhos informáticos. Que consequências achas que poderão ter estes hábitos, praticamente inatos para alguém da tua idade, na maneira como a tua geração lê obras tão longas e complexas como um romance? Achas que essas novas tecnologias, já não tão novas, na verdade, podem ter impacto na maneira como lemos?

Sim, eu acho que tem. Hoje em dia existe uma certa instagramização da vida. Ora, isto parece-me ser algo de inato a todos os jovens e depois tudo vai depender da forma como se consegue combater ou não esses estímulos. Nós já não conseguimos ficar muitas horas focados numa só tarefa, ainda para mais intelectual. E isso, vejo-o pelos meus amigos, acontece com toda a minha geração, mas depois o que varia muito é a forma como lidamos com isso, como combatemos esses estímulos sensoriais exteriores. Eu noto, por exemplo, que se for estudar depois de ter passado meia hora no computador ou no telemóvel, o estudo é muito menos produtivo. E o mesmo acontece com a literatura. Ou seja, se nos quisermos dedicar à literatura temos de nos abstrair o mais possível dessas tendências que são naturais… e não há problema nenhum em serem naturais, pelos menos naturais para quem nasceu a partir de finais dos anos 90 e cresceu no meio de computadores e outros aparelhos informáticos.

 

Tu referiste uma palavra que se calhar não foi clara para quem nos ouve. Falaste em instagramização, termo que pediste emprestado a Instagram, o nome de uma célebre rede social. Se bem percebi, tu queres dizer que as novas gerações (e não só, visto existirem muitos adultos, reformados até, viciados no Facebook, por exemplo)… toda essa gente, no fundo, está em busca do imediato, da satisfação instantânea. Ora, esse imediatismo não acontece durante a leitura de um romance, pois é um processo mais moroso, sendo difícil extrair prazer logo na primeira página…

Claro. É aquela dialética entre os prazeres inferiores e os prazeres superiores. Não me parece, de todo, que devamos renunciar aos prazeres inferiores, acho é que devemos focar-nos no que está mais longe. Claro que isto é muito mais fácil dizer do que fazer…

 

Claro, como em quase tudo.

No outro dia, eu li esta frase no Metro de Lisboa, já não me lembro quem a disse: “Tentar abdicar do que está perto, para conseguir ter o que está longe”. E creio que é muito difícil conseguirmos ter essa atitude hoje em dia, pelo menos de uma forma continuada. É muito complicado, pelo menos para um jovem, pensar a longo prazo. Isso não existe praticamente, é muito raro e não dura muito tempo. E, desse ponto de vista, escrever um livro é um combate interessante.

 

Imagino. Eu tenho vergonha de mostrar tudo o que escrevi com a tua idade.

Também já me aconteceu (risos).

 

Bem, Gonçalo, estamos a chegar ao fim. Há pouco falámos em leituras que te ajudaram… São também os livros que lemos que nos constroem enquanto ser humano e escritor. Sugere-nos então um livro para que nós o possamos ler por aqui.

Acabei de ler um livro ontem que comprei na Feira do Livro. É a única obra de ficção do Agostinho da Silva e chama-se “Herta Teresinha Joan”. Gostei bastante. Já tinha lido algumas coisas do Agostinho da Silva. É um livro muito bonito.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Quarta-feira, 18 de julho, 8h30

Domingo, 22 de julho, 14h25