Nuno Gomes Garcia conversa com… Harrie Lemmens

O holandês Harrie Lemmens, tradutor de autores brasileiros como João Ubaldo Ribeiro, Luís Fernando Veríssimo e Machado de Assis, além de nomes como José Saramago e Fernando Pessoa, escreveu um livro sobre o Brasil e deu-lhe o título de «Deus é Brasileiro».

Originalmente escrito em neerlandês, a obra foi traduzida para português e publicada no Brasil pela Editora Zouk.

Harrie Lemmens viajou então por oito cidades brasileiras, acompanhado pela sua esposa Ana Carvalho, uma fotógrafa portuguesa, encontrou-se com vários amigos das letras e construiu um livro. Um livro que não é nem um panegirico àquele imenso país-continente, nem uma crítica destrutiva. É um livro impressionista escrito por um europeu do norte que é um amante da lusofonia e que aborda as franjas da sociedade brasileira e a sua miscigenação. Fala de arquitetura e de literatura, de história e de paisagens. E não esquece as inúmeras tentativas falhadas de conquista do então Brasil português por parte dos invasores holandeses.

Partindo de conversas com escritores, amigos e transeuntes, este livro resulta num relato lúcido, visto de fora, sobre as complexidades brasileiras.

 

Harrie, eu estava a ler o livro e dei por mim a pensar: «enfim, um livro sobre o Brasil que não remete o leitor europeu para o estereótipo da praia, do samba e do futebol». É difícil para um europeu, um europeu que não seja português, fugir aos clichés sobre o Brasil?

Nuno, o segredo está na língua. Tem de se dominar a língua para conseguirmos chegar perto das pessoas e assim se conversar com elas, pois só assim as ficamos a conhecer e através delas poderemos conhecer bem o país. Eu costumo dizer que este livro, «Deus é Brasileiro», é mais um retrato, ou até um autorretrato do Brasil. Eu não dou muitas opiniões no livro.

 

Não dás, é verdade.

São os próprios brasileiros que as dão. E assim pintam o seu próprio país.

 

Harrie, esta frase: «Nem todas as verdades sobre este livro são inventadas»… é a frase que abre o livro. O que significa? Significa que existem verdades brasileiras que aos ouvidos europeus parecem mentiras?

Isso é uma espécie de brincadeira, uma ironia. Existem muitos livros cujos autores dizem: «eu vou dizer toda a verdade». Bem, eu acho que não existe a verdade. Existem sempre várias verdades. E a verdade, às vezes, é ela própria uma forma de ficção. Ou, por vezes, a ficção é mais verdadeira do que a própria verdade. Tentei relativizar um pouco essas verdades no livro. Ora, isso não significa que o livro não contenha verdades. Mentira não contém! Não há nenhuma mentira.

 

Tu és holandês, já ficou claro, e abres o primeiro capítulo do livro com a chegada, em 1624, de uma esquadra holandesa a Salvador da Bahia. Façamos um exercício de História alternativa. O que seria hoje o Brasil, na tua opinião, caso tivesse sido colonizado pelos Holandeses? Existiria na sua dimensão atual ou seria uma multitude de Estados independentes, tal qual a América espanhola? Consegues imaginar um Brasil moldado à imagem da Holanda?

Bem, esse país moldado à imagem da Holanda já existe e chama-se Suriname.

 

Sim, também houve uma experiência na Indonésia.

Claro. E o povo da Indonésia deu um pontapé nos Holandeses e lá foram eles. Ou lá fomos nós. Mas sobre o Suriname. Muitos Brasileiros, principalmente as pessoas de Pernambuco, estão sempre a dizer «ai quem me dera ter ainda aqui os Holandeses». E eu respondo-lhes sempre: «sim, basta olharem para o Suriname que tem uma situação muito pior do que a brasileira, com um desenvolvimento económico muito atrás do Brasil». Sobre isso não há dúvidas. Mas não se pode especular sobre o que seria o Brasil, ou Pernambuco, neste caso, se os Holandeses tivessem ficado lá. Isso não se sabe.

 

Para quem não sabe, o Pernambuco, no nordeste brasileiro, foi ocupado em 1630 pelos Holandeses que aproveitaram assim as fragilidades do Império Português causadas pela União Ibérica que durou de 1580 a 1640. Os exércitos luso-brasileiros derrotaram enfim os Holandeses nas batalhas de Guararapes, expulsando-os definitivamente do Brasil em 1654.

Isso mesmo. Eu quis começar com Salvador e fazer um círculo até Recife onde os Holandeses, com o grande Holandês Maurício de Nassau, se estabeleceram.

 

Na cidade de Recife, sede da efémera Nova Holanda, ainda hoje se percebe a bela arquitetura de estilo holandês.

Sim, é verdade. Esses círculos de que falo e que constituem o livro são uma referência ao Inferno, retratado por Dante na «Divina Comédia», e que é constituído por nove círculos que correspondem às suas várias repartições, digamos assim. Não quero com isto dizer que o Brasil é um Inferno… Uma parte é, outra não.

 

Falemos um pouco da revista digital que fundaste com a Ana Carvalho: a «Zuca Magazine». É uma revista em língua neerlandesa inteiramente dedicada à cultura lusófona. Qual tem sido o seu impacto na Holanda?

Na Holanda traduz-se bastante literatura escrita em língua portuguesa. Muito mais do que ao contrário. Eu próprio já traduzi perto de 90 títulos… literatura do Brasil, Angola, Moçambique, Portugal… A revista, nós começamo-la há pouco mais de dois anos para divulgar melhor a literatura de língua portuguesa. Não se traduz assim tantos livros por ano, mas quando se juntam todos os anos, chegamos a uma quantidade bastante alta. Nós queríamos publicar poesia e prosa nessa revista digital para mostrar aos leitores holandeses o que é que contém a literatura de língua portuguesa. Aliamos o texto à imagem, que é criada pela Ana Carvalho, que tem uma maneira bastante específica de fotografar. Para te dar um exemplo, nós tivemos na revista uma série de citações do «Livro do Desassossego» de Fernando Pessoa e a Ana escolheu as fotografias que as acompanham. Essa série será agora lançada na Holanda em forma de livro, no dia 13 de junho. Ou seja, é uma obra que nasce diretamente da revista. Sairá também em junho uma coletânea de poemas de Rui Cóias que resulta da revista. E já houve vários editores que se interessaram por nomes, por livros, que viram referidos na revista. Além disso, no ano passado, fizemos dois números em papel. O primeiro era geral, mostrava vários escritores de vários países, e o segundo foi um número totalmente dedicado ao José Saramago. Este ano, o objetivo é fazer uma revista maior dedicada à poesia e com um portefólio sobre António Lobo Antunes.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Manuela Gonzaga, autora de «Lucide Folie»

Quarta-feira, 30 de maio, 8h30

Domingo, 03 de junho, 14h25