Nuno Gomes Garcia conversa com… Isabel Rio Novo

A escritora portuense Isabel Rio Novo regressa com o romance «A febre das almas sensíveis», depois de, em 2016, ter publicado o muito bem acolhido «Rio do Esquecimento».

A Isabel, que nasceu em 1972, confirma-se como uma das incontornáveis vozes literárias femininas da sua geração com este novo romance que, à semelhança do anterior, foi finalista do Prémio Leya.

«A febre das almas sensíveis» retrata o Portugal dos anos 30 do século passado, um país atrasado e orgulhosamente só, e explora uma das grandes epidemias da época: a tuberculose. Uma doença que atingiu quase todas as famílias, todas as classes sociais e que matou milhares de pessoas.

Sem fármacos que combatessem a doença, os médicos recomendavam aos doentes o internamento em vilas de montanha. Um dos grandes destinos era a Serra do Caramulo.

Ora, a Isabel, partindo deste substrato, construiu duas narrativas paralelas – uma que retrata o drama de Armando e da sua família, atingidos pela doença, e outra que segue uma misteriosa personagem que vive no presente e que explora a ideia romântica que se tem da doença, percorrendo a vida de grandes escritores tais como António Nobre ou Júlio Dinis.

 

Isabel, há umas semanas, saiu um artigo no jornal Público, no qual participaste, sobre esta doença que tantas vidas afetou na época que tratas no romance. Se é verdade que a literatura do Romantismo está carregada de personagens tísicas, para nós, hoje, esta doença parece-nos algo de muito distante. Tu sentes que este livro que escreveste é uma arma contra o esquecimento e que tenta, de certa forma, salvaguardar a memória das vítimas?

Acaba por ser, embora a intenção não tenha sido exatamente essa. Na verdade, quando parti para a escrita do romance, tinham-me chegado às mãos um conjunto de papéis relativo a uma história de família relacionada com um triângulo amoroso, sendo que um desses vértices, uma dessas personagens, tinha sido vítima de tuberculose e tinha passado pela instância do Caramulo. Mas foi indiretamente que fui parar à questão da tuberculose. Inicialmente, estava mais interessada em explorar o tal triângulo amoroso entre as personagens, até que, a dada altura, me concentrei especificamente no drama da personagem que fora parar muito jovem ao sanatório e que tinha acabado por morrer lá. O romance então acabou por sofrer uma inflexão nessa direção. Depois, eu, que já tinha a noção, como nós todos temos, de que uma grande quantidade de escritores portugueses, sobretudo naquela viragem do século XIX para o século XX, foram vítimas da tuberculose. E também partilhava essa associação romântica entre aquela ideia de que a genialidade na escrita poderia estar associada à tuberculose, ou à tísica, como se costumava dizer. Então, acabei por juntar essas histórias todas. Indiretamente, como grande parte do romance se passa no Caramulo, na altura uma reputada estância senatorial, acabou por se converter numa espécie de resgate dessa memória esquecida.

 

Isabel, há uns tempos encontramo-nos aqui em Paris. Tu andavas em «visita de estudo» tendo em vista o teu próximo projeto. Tu és daquelas autoras que faz questão de visitar os locais que irá recriar nos romances. Fizeste isso também com este livro. Visitaste antigos sanatórios, por exemplo. O que é que esse contacto concreto com os lugares acrescenta ao teu processo criativo?

Sim, eu gosto de ir visitar os locais. A ideia para os meus livros, habitualmente, não me surge inteira e acabada logo no início. É uma ideia vaga que se vai instalando, definindo, até que o gesto da escrita se torna inevitável. E uma parte importante é, quando possível, a visita aos locais. Como já disseste, no romance há uma rapariga que no momento presente visita as ruínas dos sanatórios e recolhe despojos, sobretudo papéis. Ela interessa-me pelo tema porque está a preparar uma tese sobre escritores vitimados pela doença. Eu não tive tanta sorte como ela, não encontrei tesouros no Caramulo, foi realmente durante uma visita, em agosto de 2016, com o Paulo, que também é escritor.

 

Sim, o Paulo falou connosco sobre o «Revolução Paraíso»…

Sim, por altura do 25 de Abril. Mas, retomando o assunto, foi muito graças às impressões que o local exerceu em mim que resolvi definitivamente escrever o romance. Porque é realmente um sítio muito forte, carregado de uma beleza…

 

É lindíssimo. Quem não conhece a Serra do Caramulo tem de lá ir.

Tens não só a beleza natural, mas também tens a beleza soturna, e mais uma vez caímos no Romantismo, das ruínas. Mas depois tens toda a carga emocional que advém do facto de estares a visitar locais onde sabes que pessoas morreram aos milhares. E que quando iam ser internadas nos sanatórios, sabiam que as probabilidades que tinham de morrer eram maiores do que aquelas de se curarem. Isto antes da chegada dos antibióticos. Que ao nosso Portugal da ditadura chegaram mais tarde.

 

Outra característica do teu processo. Antes de começares a escrever, tu já sabes como vai acabar a história e até já tens um título. Isso pode parecer confuso a quem nos ouve. Sabes o fim, mas ainda não sabes como vais começar. Podes explicar-nos?

Bem, há a tal ideia vaga que vai surgindo. E que é que surge? Olha, basta uma palavra descoberta ao acaso, basta uma ideia trocada com o Paulo, basta um retrato, um papel antigo. No caso deste romance, acabou por haver um bocadinho disso tudo. O clique inicial é algo quase de misterioso, mas eu sei que vou passar daquela fase em que pesquiso, em que leio, em que tento estudar um tema para a escrita. Quando já sei como é que a história começa…

 

Afinal sabes como começa!

Sim, sei, mas tenho de saber como é que acaba. E só quando tenho o título definitivo é que eu sei que o livro já está garantido. A não ser que algum imponderável aconteça!

 

Isabel, eu já fiz esta pergunta várias vezes a outros escritores e as respostas nem sempre coincidem. Tu achas que a boa literatura, como é indubitavelmente o caso daquela que produzes, pode ter um papel que ajude a alicerçar as ideias de uma sociedade como a nossa, algo desmemoriada, que é cada vez mais frenética e que nem sequer perde tempo a analisar o passado? Achas que, neste contexto, livros como o teu são importantes?

Vou então falar da literatura em geral. Eu acho que a boa literatura melhora-nos sempre enquanto pessoas. Não propriamente por ser engajada ou… eu não sou propriamente adepta, nem como escritora nem como leitora, daquela literatura muito declaradamente engajada ou comprometida socialmente, mas julgo que todos os livros que nos fazem pensar, que nos põem em contacto com a natureza humana, que nunca é totalmente branca ou negra, mas que anda ali por todas as gamas de cinzento. Portanto, aquela literatura que nos confronta com a natureza humana, a começar pela nossa, tem inevitavelmente de nos levar a pensar, a refletir. E dessa introspeção, creio que tem de nascer algo de melhor dentro de nós. Acho que é por esse caminho que a literatura, creio que era essa a tua pergunta, pode intervir na sociedade.

 

Não exatamente uma intervenção, mas sim se pode ajudar a pensar o presente e o futuro através da análise do passado. Por exemplo, o caso da tuberculose. Hoje em dia já ninguém pensa nela. A morte, graças aos avanços da medicina, já não está tão presente no dia-a-dia. Mas ninguém nos diz que, se nos descuidarmos, ela não volte a estar.

Sim. Por exemplo, em relação a este livro, fala-se muito da questão da tuberculose e dos sanatórios… e é verdade. Talvez seja aquilo que mais marca as pessoas quando chegam ao fim da leitura. Mas essa questão da tuberculose e dos sanatórios só chega a partir de metade do livro. A parte inicial, é um panorama da vida em Portugal entre as décadas de 20 e 40. Um país atrasado, fechado sobre si próprio, que recusa todas as vanguardas e todos os movimentos em favor do progresso. E, nesse sentido, pode também conter essa denúncia.

 

Isabel, para terminarmos. Sugere-nos uma leitura.

Não estava preparada. Vou ser espontânea. Li o último livro que o Machado de Assis publicou. Mas também vos sugiro os últimos livros do Mário Cláudio e da Luísa Costa Gomes.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Harrie Lemmens autor de «Deus é brasileiro»

Quarta-feira, 23 de maio, 8h30

Domingo, 27 de maio, 14h25