Nuno Gomes Garcia conversa com Isabel Tallysha-Soares: “Ser bilingue dá-nos uma grande aceitação do Outro”

Isabel Tallysha-Soares é professora universitária em Lisboa e acaba de lançar “O Homem Manso”, o seu terceiro romance, pela Coolbooks, uma chancela da Porto Editora.

O homem manso deste romance, e seu protagonista, é D. Rodrigo Cid d’Oliveira Gaetán de Cormorão e Pesanha, 8º Conde de Monte-Chão, um boémio e um humanista que, subjugado pela esposa, Dona Maria da Penitência, e pelos costumes da fidalguia, resolve emancipar-se e dar outro sentido à sua existência.

Tendo isso em vista, ele despede-se dos seus touros e dos rurais com quem trabalhava e alista-se como voluntário na Legião Francesa, partindo para a Guerra do Rife, em Marrocos, onde convive com Franco, o futuro ditador espanhol, e com o marechal Pétain, futuro mestre da França colaboracionista. D. Rodrigo descobrirá nos berberes do Atlas a mesma vivência simples do campesinato da sua Alenquer natal.

D. Rodrigo, então transformado em cidadão francês por valentia demonstrada na guerra, tornar-se-á durante a Ocupação um membro da Resistência francesa.

Regressado à sua herdade, D. Rodrigo continuará a enfrentar a sua eterna e mais dolorosa guerra, aquela que o antagoniza a Dona Maria da Penitência, sua esposa e amante.

Um romance muito divertido, cuja ácida ironia deixa a nu determinados tiques de uma certa fidalguia portuguesa que, acredita-se, está em vias de extinção.

 

Isabel, esta história inspira-se numa outra vida, essa verídica.

Sim, eu cresci a ouvir histórias sobre um vizinho que eram contadas pelo meu pai e pelos meus avós. Esse vizinho, D. Rui, inspirou o meu D. Rodrigo. Cerca de metade, não sei bem quantificar, das coisas que acontecem ao D. Rodrigo aconteceram ao D. Rui e foram vivenciadas pelos meus familiares. Este romance é portanto semi-ficcionado.

 

E essa sua inspiração, o D. Rui de Sequeira, chegou mesmo a conhecer o Franco e o Pétain?

Não, isso já não, isso já é território ficcional. Digamos que a parte rural, passada em Alenquer, é muito baseado e muito próxima de acontecimentos verídicos. Já a parte exterior a essa ruralidade de Alenquer é completamente ficcionada.

 

Ao ler o livro, fiquei com a ideia – que pode estar completamente errada – que o leitor está perante uma crítica social a um certo modo de vida da velha aristocracia portuguesa. Isso é verdade? E, por outro lado, na sua opinião, essa aristocracia ainda existe?

Não, é apenas o retratar de uma condição social que me foi próxima num determinado momento da vida. Não há aqui nenhuma tentativa opinativa ou crítica ou valorativa. Essa fidalguia é uma fidalguia mais romanceada, mais do passado, diferente daquela que existe hoje em dia. Não há elementos do presente neste romance. Há, sim, um romancear, um certo idealizar do nobre, que retrata o fidalgo boémio, do mesmo tipo que, acho, existe na mente coletiva dos portugueses, até com algumas raízes na nossa literatura do século XIX, nas tradições mais associadas ao mundo rural, ao mundo tauromáquico. Não há de facto qualquer outro tipo de valoração, crítica ou não, desse estrato social.

 

Bem, quem começar a ler o livro ficará logo surpreendido. O romance abre com a esposa de D. Rodrigo, Dona Maria da Penitência, a fazer algo de muito inesperado. Sempre que desconfia que o marido comete adultério – e são muitas as vezes – ela pendura-lhe as ceroulas brancas à janela para que toda a gente as veja e saiba que está aborrecida com o marido. Mas eu fiquei sempre com esta dúvida: o D. Rodrigo traía ou não a esposa?

Sobre isso cada leitor chegará à sua conclusão.

 

Eu fiquei sempre na dúvida. Às vezes achava que sim, às vezes achava que não…

Eu própria duvido de muitas coisas. Isso dependerá da interpretação de cada pessoa, se ele traía ou não a esposa. Se pulava a cerca ou não (risos).

 

Então, vamos permitir ao leitor que tire a sua própria conclusão.

Exatamente.

 

Isabel, sei que não lhe interessa explorar a faceta mais pessoal da sua vida. De qualquer modo, tenho de lhe perguntar isto, que julgo inofensivo: a Isabel costuma dizer que não nasceu na língua portuguesa. Em que língua nasceu?

Eu nasci na língua alemã. Foi a língua que eu falei até ter sete anos, altura em que me introduziram na língua portuguesa. Até aí, a minha vivência fez-se na língua alemã, que era a língua na qual eu me exprimia. O português veio por imposições de vida e foi sempre uma língua com a qual eu tive alguma estranheza porque, por um lado, me foi imposta e, por outro, era muito diferente da língua que eu falava. E também porque há sempre um trauma quando passamos de uma língua para a outra.

 

Então a sua língua materna é o alemão?

Não posso dizer que seja a minha língua materna. É, sim, a língua primeira. Hoje em dia, eu identifico a minha língua materna com o português, visto que me expresso mais em português, e até mais em inglês, do que em alemão, que neste momento é uma língua muito secundarizada na minha vida. Isto tem a ver com as fases em que nós estamos, a vida não é linear. No meu caso, fui tendo diversas línguas e diversas formas de pensamento.

 

Quem nos escuta aqui em França é tendencialmente bilingue. Para quem escreve romances quais são as vantagens e desvantagens, se as houver, de ser bilingue?

Existem muitas variantes de bilinguismo. Há o bilinguismo em que uma pessoa, embora fale bem dois idiomas, pensa sempre numa das línguas. E depois há o bilinguismo equilingue, ou seja, o cérebro da pessoa comuta para as línguas em que a pessoa fala. Neste caso, se pensamos em português falamos em português, mas comutamos facilmente para o alemão ou para o francês. Eu vejo grandes vantagens no bilinguismo, porque eu própria sou uma pessoa fruto do bilinguismo e do equilinguismo também. A forma mental de uma língua não é a forma mental de outra língua. E uma pessoa que tem a capacidade de pensar e falar em diversas línguas consegue construir pensamentos adequados à cultura da língua. Porque uma língua é uma cultura e a cultura transmite-se através de uma língua. Existem muitas coisas no pensamento da língua francesa, ou alemã, ou portuguesa que não são compatíveis com uma tradução literal. E uma pessoa bilingue tem uma outra flexibilidade cultural e linguística para perceber o innuendo de cada cultura e de cada tradição oral, social, literária. Eu sou uma grande defensora do bilinguismo e do facto das pessoas se expressarem em diversas línguas porque nos dá uma grande flexibilidade e até uma grande aceitação de culturas diferentes. Ser bilingue dá-nos uma grande aceitação do Outro, daquele que é diferente.

 

Ensina a tolerância.

Completamente. É algo de muito positivo o facto de na Europa existirem milhões de habitantes bilingues, não só por contingências de expatriamento, mas também por existirem países na Europa que são bilingues – a Espanha, a Alemanha… – convivem com muitas línguas no seio do seu território.

 

Apesar de a convivência nem sempre ser pacífica.

É verdade, sim, mas, seja como for, em termos linguísticos, essa convivência existe e tem de existir para que haja comunicação na sociedade.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Ana Carvalho

Quarta-feira, 24 de outubro, 9h30

Domingo, 28 de outubro, 14h25