Nuno Gomes Garcia conversa com José Manuel Garcia: “Fernão de Magalhães marca o início do conhecimento terrestre completo”

No dia 20 de setembro de 1519 parte de Sanlúcar de Barrameda a expedição de Fernão de Magalhães. Fez portanto há pouco tempo 500 anos que o grande navegador português iniciou, ao serviço do Carlos I de Espanha, futuro Carlos V, a primeira viagem de circum-navegação do planeta. Um inacreditável avanço do conhecimento cosmológico que trouxe para a ribalta uma passagem desconhecida, aquela que une o Atlântico ao Pacifico, revolucionando assim a maneira como os seus contemporâneos viam o mundo. Magalhães morreu nas Filipinas, dezanove meses depois, a meio da viagem, e nunca chegou a conhecer o verdadeiro impacto da sua descoberta geográfica. Descoberta que transformou a Espanha na primeira potência mundial.

Para quem, como eu, leu o grande livro que o escritor austríaco Stefan Zweig dedicou a Magalhães, a publicação de um novo livro sobre o explorador português é sempre motivo de alegria. Por isso, no mês passado a publicação do novo livro do historiador José Manuel Garcia foi, para mim, mais desses momentos.

“Fernão de Magalhães: herói, traidor ou mito” é um relato completo da viagem de circum-navegação que, de certa forma, concretizou o objetivo inicial de Colombo, que era o de chegar às Índias Orientais viajando para Ocidente, e que finaliza o processo de globalização – para o bem e para o mal – iniciado por Vasco da Gama em 1498.

 

José Manuel, podemos dizer que existe um mundo antes de Magalhães e um mundo depois de Magalhães?

Sem dúvida. Tal como acontece com Vasco da Gama que começa, digamos assim, uma época “Gâmica”, como foi dito pelo grande historiador inglês Arnold J. Toynbee, na História entre o Oriente e o Ocidente, Fernão de Magalhães marca o início do conhecimento terrestre completo. A esfera da Terra passa a ser completamente conhecida, o que não acontecia antes. Podemos dizer que Fernão de Magalhães, só à custa dele, descobriu metade da Terra. Existia uma metade muito substancial, que vai desde o Rio da Prata até às Filipinas, de modo que podemos dizer que só com Fernão de Magalhães, só em 1521, quando ele morre e acabou de dar a sua volta à Terra – primeiramente ele já tinha feito uma parte da sua volta à Terra, por isso é que eu digo que foi o primeiro homem a completá-la. Portanto, podemos dizer que, simbolicamente, é ele que inicia o processo de mundialização, de uma forma ainda incipiente, através da interconexão entre as várias partes da Terra. Magalhães é portanto o homem que marca a diferença entre o antes e o depois, porque até então, os Portugueses e os Espanhóis já tinham descoberto praticamente metade da Terra, e ele descobriu a metade que faltava.

 

Em relação à viagem propriamente dita. Existe um mito relacionado com as verdadeiras dimensões do oceano Pacífico. Diz-se que Magalhães não conhecia exatamente as dimensões do Pacífico e que, por causa disso, a travessia demorou muito mais do que o previsto, levando a uma hecatombe no seio da tripulação com mortes atrás de mortes. Magalhães conhecia ou não a verdadeira dimensão do Pacífico? E afinal quantos tripulantes morreram?

Não há dúvida que, devido à abundância de fontes documentais sobre essa travessia, sabemos – através de um mapa feito por Pedro e Jorge Reinel, por encargo de Magalhães, um planisfério de 1519, muito bonito, que desapareceu durante a Segunda Guerra Mundial – que ele tinha uma noção muito aproximada da dimensão do Pacífico, aquele mar que estava entre as Molucas, no extremo oriente, e o Brasil e o rio da Prata, que era o território que até então se conhecia. Depois, de facto, ele tem a ousadia de avançar para esse mar desconhecido, talvez esperando que pudessem existir ilhas e abastecimento, o que não encontrou, só encontrou duas pequenas ilhas que não tinham nada. A verdade é que foi uma viagem com muita fome, muita doença, muito sacrifício, mas, devido a se ter consumido muito aipo, só morreram nove pessoas entre o estreito de Magalhães e a ilha de Guam, nas Marianas. Apesar das dificuldades, a boa navegação permitiu atravessar o Pacífico, que são muitos milhares de quilómetros.

 

Existe também aquela ideia feita de que, tal como havia acontecido com Colombo, o rei português recusou a proposta de viajar para Ocidente feita por Magalhães. Sabe-se que isso não foi bem assim, mas a verdade é que ele ofereceu os seus serviços a Carlos I de Espanha. Já ouvi o José Manuel a falar de uma espécie de vingança de Magalhães contra o Manuel I.

De facto generalizou-se a ideia errada de que Magalhães teria proposto a D. Manuel I, o rei português, um projeto de viagem para ocidente, em busca das Molucas, ou mesmo para dar a volta ao mundo, e que o rei recusou. E depois estabeleceu-se, de facto, o paralelismo com Cristóvão Colombo a quem João II recusou por duas vezes o projeto de atingir a Índia viajando para ocidente. Isso é um facto. Agora D. Manuel I não recusou nada a Fernão de Magalhães. Segundo o que estava estabelecido no Tratado de Tordesilhas de 1494, D. Manuel I nunca poderia autorizar que Fernão de Magalhães fizesse ao seu serviço, ao serviço de Portugal, uma viagem para o ocidente do Brasil porque esse território era espanhol. O rei de Portugal nunca o poderia ter autorizado e nem ao Fernão de Magalhães lhe passou pela cabeça fazer tal proposta. O que o Fernão de Magalhães queria era exatamente o contrário. Ele queria que D. Manuel I o autorizasse a ir por oriente, pelo cabo da Boa Esperança, Índia, Malaca, até às Molucas, ao encontro do seu amigo Francisco Serrão. Ele escreveu uma carta ao Serrão, em 1516, em que lhe dizia “olha, eu vou ter contigo ao oriente, a bem, se o rei português me autorizar, para aí enriquecer contigo, ou, se não for assim, vou a mal, por ocidente ao serviço de Espanha e de Carlos I, porque o rei português não me autoriza a ir”. Então, Magalhães, depois, por uma questão de honra, aborreceu-se muito com D. Manuel I porque o rei não lhe deu o aumento de 100 reais no seu salário mensal, tal como ele queria, e, também devido a intrigas na Corte relacionadas com Azamor. Assim, por questões de honra e de dinheiro, Magalhães foi-se pôr ao serviço de Carlos I, que o apoiou porque os Espanhóis queriam ter acesso às especiarias e quando viram que Magalhães os poderia levar até às especiarias das Molucas, o cravinho, sobretudo, a especiaria mais valiosa, acederam, consentiram e deram-lhe todo o apoio. Tudo isso aborreceu muito o D. Manuel I, que nunca pensou que Magalhães iria cometer esse ato contra os seus interesses.

 

Isso mesmo. E perante o ‘fait accompli’, como se diz por aqui, o Manuel I enviou mesmo uma expedição para evitar a todo o custo o sucesso da viagem de Magalhães.

Exatamente. É um aspeto que é menos conhecido, apesar de estar tudo muito bem documentado e citado por cronistas. O D. Manuel tentou, primeiro, por meios diplomáticos, através de embaixadores e feitores que tinha em Espanha, pressionar quer o Carlos I, quer o Magalhães no sentido de impedir a viagem. Como ela, mesmo assim, se realizou, o rei de Portugal enviou, em 1520, uma armada comandada por Jorge de Brito para a Índia, Malaca e Molucas para ali construírem uma fortaleza que impedisse os Espanhóis de lá chegarem, e, caso apanhassem o Fernão de Magalhães, ele deveria ser preso, tal como os Espanhóis que o acompanhavam, porque estavam em território português. De modo que tudo aquilo foi uma corrida à volta do mundo. Os Portugueses de Jorge de Brito por oriente para chegarem às Molucas e Magalhães, ao serviço de Espanha, por ocidente para também chegar às Molucas. Eles quase que chegaram ao mesmo tempo. Os Espanhóis chegaram primeiro. Entretanto, o Fernão de Magalhães morreu nas Filipinas e o Jorge de Brito também morreu em Samatra, na Indonésia. A verdade é que os Portugueses ainda prenderam alguns Espanhóis nas Molucas.

 

E em relação às Molucas, na atual Indonésia. Em 1519 já se sabia de que lado, segundo Tordesilhas, ficavam as Molucas? Se do lado português, se do lado espanhol?

Não há dúvida que essa foi a grande questão. De facto havia o antimeridiano, os 180 graus que se começavam a contar a partir de Belém do Pará, na zona do Amazonas. Para oriente, sabia-se que tudo aquilo era território português, agora até onde ia, onde acabava esse território português é que se discutia. Medir a longitude no outro lado do mundo, o antimeridiano de Tordesilhas, era difícil. O Fernão de Magalhães convenceu-se que as Molucas, que os Portugueses já frequentavam e que ele próprio tinha participado na descoberta das Molucas do Sul, que só tinham a noz-moscada, sendo que as Molucas do Norte são as mais ricas em cravinho. Bem, de qualquer maneira, Magalhães conhecia mais ou menos a posição das Molucas. Depois, enfim, quando chegou às Filipinas, que são a norte das Molucas, muito perto, é que ele percebeu que afinal as Molucas estavam na parte portuguesa. Existe essa referência nomeadamente no diário do piloto Francisco Alves, alguém que media as longitudes com muito rigor, e ele determinou, aliás os Portugueses apanharam documentos aos Espanhóis, que as Molucas eram mesmo portuguesas. Os Espanhóis é que nunca quiseram admitir isso devido às dificuldades em determinar a longitude.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Norberto Morais, autor de “Balada do Medo”

Quarta-feira, 30 de outubro, 9h30

Domingo, 03 de novembro, 14h25

 

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