Nuno Gomes Garcia conversa com Luísa Semedo: «“Descobertas” é abordar apenas o ponto de vista dos portugueses»

Luísa Semedo, Conselheira das comunidades portuguesas e Presidente do CCP Europa, antiga Presidente da CCPF e da AGRAFr, doutorada em Filosofia e cronista da Rádio Alfa, venceu, em 2017, o Prémio Literário e de Ilustração Eça de Queiroz com o conto «Céu de Carvão, Mar de Aço», inserido na coletânea intitulada «Os Desafios da Europa: Racismo, Emigração e Refugiados» e que conta com outros nomes como João de Almeida, Quita Miguel, Márcia Balsas e Márcia Costa.

Mais conhecida pelo seu ativismo social e político, tentaremos aqui abordar a faceta literária de Luísa Semedo, falando não só desta coletânea de contos, mas também levantando um pouco o véu sobre o seu romance de estreia que deverá chegar às livrarias portuguesas durante os primeiros meses de 2019.

Este seu conto, «Céu de Carvão, Mar de Aço», narra a viagem de Kimia Benda-Nzuji desde a República Democrática do Congo até à Europa, fugindo da guerra e naufragando na travessia do Mediterrâneo.

Uma travessia de terra e de mar que retrata a atual catástrofe humanitária que decorre às portas da nossa Fortaleza Europa e cuja forma como se processa faz lembrar, já o disse Luísa Semedo numa entrevista, a travessia que os navios negreiros portugueses e europeus faziam do Atlântico há não muitos séculos.

 

Luísa, não me canso de te ouvir explicar o significado deste título: «Céu de Carvão, Mar de Aço». Explica-o a quem nos ouve.

Este título foi inspirado na CECA, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a Comunidade precursora do que é hoje a União Europeia. Lembrei-me do discurso do Robert Schuman, de 1950, aquando da fundação desta Comunidade, em que ele fala de oferecer a produção a todos os países, fala do desenvolvimento de África, fala de paz… ou seja, tem um discurso completamente humanista que entra em contradição com as palavras e os atos vergonhosos, indecentes e indignos que se verificam hoje na Europa. Portanto, utilizei o «carvão» e o «aço» para substanciar os elementos «céu» e «mar» omnipresentes para estes refugiados durante a travessia para chegar à Europa.

 

A protagonista do teu conto tem uma certa admiração, técnica, dirás tu, pelas viagens exploratórias portuguesas do século XV e XVI. Isto faz-me lembrar a atual polémica sobre o futuro museu a ser dedicado às navegações portuguesas de quatrocentos e de quinhentos e que será construído em Lisboa. Por que razão não concordas com o nome de «Museu das Descobertas»?

Não, não concordo… Basta pensar um bocadinho para perceber que não faz sentido nenhum dar o nome de «Museu das Descobertas» quando um dos objetivos referidos pelo próprio Fernando Medina, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, é referir todos, e insisto, todos, os componentes dessa época histórica. Ora, o que é que se passou durante esses séculos? Eu respondo: escravatura, colonização, trabalho forçado, violação de mulheres, usurpação de terras… No termo «Descobertas» não está, de todo, incluído esse tipo de situações. Temos de levar também em consideração que esta História é uma História partilhada com os povos africanos, asiáticos, ameríndios… não é só uma História de Portugal. Logo, enfatizar o termo «Descobertas» é abordar apenas o ponto de vista dos Portugueses, para quem, sim, algo de novo foi descoberto, algo que não conheciam, mas para as pessoas que já lá viviam, que já tinham uma História milenar, não faz sentido nenhum falar de Descobertas. E se quisermos, na verdade, ultrapassar estes problemas, não será com eufemismos que vamos lá.

 

Mas não consideras que a palavra «Descobertas», por estar assim no plural, já não abrange os dois lados, o daquele que chegou e o daquele que já lá estava? Não te leva a pensar em descoberta mútua? Ou, para ti, o peso histórico de «Descobertas» ou «Descobrimentos» não permite uma… deixa pensar num bom termo… sei lá, uma «Refundação» da maneira como fomos ensinados a encarar esses 500 anos da nossa História comum?

Uma descoberta é normalmente algo de positivo, algo que procuras ou então uma boa surpresa, ver chegar uns bandidos na tua casa para te roubar os bens, tornar-te escravo, violar as mulheres não é propriamente uma descoberta é… deixa pensar num bom termo… é um massacre. Se essa refundação de que falas passa por branquear a violência para que fiquemos todos amiguinhos, sabemos bem quem tira proveito disso. Não há aqui mediação, não há que relativizar e pôr tudo ao mesmo nível, há de um lado o agressor e do outro o agredido, a refundação passará pelo assumir, de uma vez por todas, a dissimetria da relação.

 

Passemos então para a atualidade. A teu ver, a forma depreciativa, que roça o racismo ou abertamente racista, como muitos europeus encaram os refugiados africanos e do Próximo Oriente que, fugindo da guerra e da miséria, tentam uma vida melhor na Europa, está ligada a esse período histórico dos chamados «Descobrimentos»?

Há, de facto, uma perpetuação. Vi há pouco tempo no Canal ARTE, um documentário essencial, que recomendo e que gostaria que fosse visto por todas e todos, chamado «Les Routes de l’Esclavage». Esse documentário mostra muito bem todo esse processo. E quando nós vemos que, por esses séculos, os escravos negros em Lisboa eram quem tratava dos excrementos e quando nós vemos que, nos nossos dias, há uma excessiva representação de mulheres negras e homens negros nos trabalhos relacionados com as limpezas, o lixo ou com os trabalhos de «servir»… confirma-se essa perpetuação do papel do negro enquanto servil, que está ali para servir os outros… e que não tem sequer acesso à propriedade. Estão, portanto, numa condição muito inferior. Existe, de facto, essa perpetuação não somente nas condições económicas, mas também na visão que se tem dos negros enquanto pessoas que não suficientemente «civilizadas».

 

Vamos mudar de assunto, mas por um excelente motivo: falemos um pouco do teu romance que sairá daqui a uns meses. Onde se passa, em que época se passa?

Passa-se em Lisboa e Cabo Verde. Na maior parte do tempo entre pouco antes de 74 até ao início do século XXI. Trata de imigração caboverdiana em Portugal, de problemas de integração, de discriminação, de bairros pobres, de alcoolismo, de exploração laboral, de segredos de família, da solidão do indivíduo face à morte, enfim… acho que já chega… as temáticas são diversas e estão interligadas. Sempre me fez confusão, peço desculpa se ofendo alguém, mas burgueses a representarem os pobres na arte… falta muitas vezes, por exemplo, o humor. Ora, é um meio que conheço perfeitamente, e mesmo nos piores momentos existe comicidade. Acho importante podermos, enfim, representarmo-nos a nós próprios. Ter a nossa própria voz, transmitir a nossa vivência através da arte também.

 

Bem, Luísa, chegámos ao fim. Para terminarmos, sugere-nos um romance.

Recomendo Machado de Assis que foi uma revelação tardia para mim, e tenho vergonha disso e sobretudo o meu livro de predileção «Les rêveries du promeneur solitaire» do Rousseau.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Ana Cristina Silva, autora do romance «Salvação»

Quarta-feira, 27 de junho, 8h30

Domingo, 01 de julho, 14h25