Ronaldo Wrobel foto: Alexandre Sant' Anna

Nuno Gomes Garcia conversa com Ronaldo Wrobel: “Existem muitos movimentos segregacionistas no Brasil”

Ronaldo Wrobel nasceu no Rio de Janeiro em 1968 e o seu terceiro romance “Les deux vies de Sofia” (publicado no Brasil como “O romance inacabado de Sofia Stern”) acaba de chegar às livrarias francesas. Esta nova tradução junta-se assim a “Traduire Hannah”, publicado em 2013.

“Les deux vies de Sofia” é um misto de policial e romance histórico, conduzindo-nos aos anos do delírio nazi mas também ao Brasil dos nossos dias. Numa atualidade pré-Bolsonoriana (o livro foi publicado no Brasil em 2013) e em pleno Rio de Janeiro, Ronaldo, um advogado, recebe um estranho telefonema. Alguém em Hamburgo o alerta para a descoberta de uma caixa de joias desaparecida desde os anos 30 e que pertence, por herança, à sua avó, Sofia Stern: uma mulher cheia de segredos por desvendar e a quem a demência começa a atingir.

Juntamente com essas joias vindas da Alemanha, surge também o “Diário” onde Sofia e a sua melhor amiga, Klara, iam relatando os acontecimentos da sua juventude durante a ascensão nazi. Sofia, ainda adolescente, foi corista de cabaré, participou no tráfico de drogas e envolveu-se amorosamente com um opositor ao regime nazi. Já Klara tornou-se numa modista bastante requisitada pela elite do Terceiro Reich.

Ao intercalar trechos do tal “Diário” da avó com a narração da investigação do neto sobre a vida que a ela levava na sua juventude, Wrobel criou um romance de suspense poderoso e complexo.

 

Ronaldo, neste livro, o personagem e o autor identificam-se. São o mesmo Ronaldo ou é apenas coincidência no nome?

Há uma série de coincidências: eu, de facto, sou judeu, me chamo Ronaldo, moro no Brasil e tive uma avó misteriosa nascida na Letônia, em Riga. Ela veio para o Brasil muito jovem e não gostava de falar sobre o seu passado. Essa minha avó veio para o Brasil antes da Segunda Guerra Mundial. Mas ela era uma arquétipa. Era uma figura bastante comum entre as avós das pessoas da minha geração. Elas não gostavam de falar sobre o passado. Esse hábito que nós temos hoje de falar sobre os acontecimentos passados e discuti-los e buscar reflexões para que certas coisas não se repitam é um hábito contemporâneo. Naquela época, os avôs, aquela geração mais idosa, procuravam poupar os jovens das suas lembranças, porque temiam, por um lado, que eles ficassem traumatizados com os horrores enfrentados na Europa e, por outro lado, eles também tinham vergonha, tudo aquilo era uma mancha. Eles se sentiam de certa forma culpados pelas tragédias que enfrentaram. Então, eu tive uma avó que morava numa casa em Copacabana, na rua 5 de julho, que, por sinal, é o dia em que eu nasci, e era uma casa com muitos objetos, muitas gavetas, armários, escaninhos com coisas misteriosas, cartas, objetos que eu não sabia o que eram ou de onde tinham vindo. Eu me inspirei nessa figura, nessa avó, para este romance.

 

Ronaldo, e em que medida e em que sentido esta proximidade familiar em relação ao Holocausto e à Segunda Guerra Mundial afetou a tua infância?

Afetou bastante, Nuno, e eu vou-te explicar porquê. Muito embora os meus avós e os meus tios-avós tenham vindo para o Brasil antes da Segunda Guerra, todos eles perderam irmãos, perderam pais, perderam parentes, perderam muita gente na guerra. E havia não apenas a dor deles, mas também o efeito disso nas nossas vidas. Eu vou-te dar um exemplo. Eu quando criança, a minha família era uma família de matriarcas e patriarcas. As minhas avós tinham irmãos, muitos ficaram por lá, mas alguns conseguiram vir. Então você tinha pessoas idosas muito importantes que influenciavam muito a cultura familiar. E essas pessoas não respeitavam o sofrimento das crianças. Eles diziam: “você não tem o direito de sofrer, você não sabe o que é o sofrimento, você está chorando por razões fúteis, você nunca passou fome, nunca perdeu ninguém”. Então, é muito claro para mim que eles carregavam sempre consigo o sofrimento. Se, por um lado, eles não permitiam que nós sofrêssemos do ponto de vista moral, por outro lado, também não permitiam que sofrêssemos do ponto de vista material. Eles nos enchiam de comida, de conforto. Nós éramos as pessoas que não poderiam passar por aquilo que eles e os seus parentes haviam passado na Europa. Então, eu tive uma vida muita afetada pela guerra e eu levei um certo tempo a compreender a que se devia esse comportamento.

 

E os teus avós conseguiram ultrapassar esses traumas alguma vez na vida?

Eles nunca ultrapassaram, Nuno. É uma questão que os acompanhou pela vida inteira. A minha avó, por exemplo, tinha duas irmãs gémeas mais jovens do que ela e de quem gostava muito. A minha avó veio para o Brasil na década de 1920 e ela se tornou governanta de uma família muito rica de São Paulo por falar muito bem alemão. Uma língua muito prestigiada, associada à nobreza. Então ela trouxe uma dessas irmãs para o Brasil, custeando a sua viagem. Ela teve de escolher qual das irmãs viria num primeiro momento e, depois, ela traria a outra. Só que a outra nunca veio. Ela ficou lá e morreu. Imagina então o trauma: ela escolheu quem ia viver, ou seja, ela escolheu quem ia morrer. Então esse sentimento, esse tipo de emoção, muito embora não fizessem parte das narrativas familiares, eles permeavam o quotidiano familiar. Eles estavam presentes. Eu, depois quando cheguei à adolescência, tive a oportunidade de conversar com eles, mas eles não gostavam de falar sobre isso. Era um assunto muito desagradável. Veja bem. Para pessoas de gerações posteriores, em alguma medida, Hitler, Estaline, Segunda Guerra Mundial, são verbetes enciclopédicos. Quando ouve falar nisso, você se lembra daquele filme, daquele artigo de jornal… Eles não. Eles se lembravam dos seus pais, de parentes próximos. Tanto é que a minha avó nunca quis voltar para aquela região, se recusou.

 

Sim, Ronaldo, mas aqui na Europa, nazis, Hitler, etc. são cada vez menos verbetes de enciclopédia. Nos últimos dez anos, temos assistido à normalização de uma retórica que é muito semelhante à utilizada pelos nazi-fascistas durante os anos 20, 30 e 40: a velha conversa do bode expiatório, o discurso “culturista” sobre a supremacia da “cultura branca” que deve ser preservada de qualquer mistura, o ódio em relação ao “Outro” e à cultura do “Outro”, seja ele negro, judeu ou árabe… E esta nova realidade assusta muita gente aqui na Europa. Também assusta aí no Brasil?

Olha, essa é uma realidade latente em todas as sociedades. Até porque, Nuno, nós devemos levar em consideração que o nazismo, historicamente falando, ele aconteceu há cinco minutos. Eu diria que existem muitos movimentos segregacionistas no Brasil. O Brasil é um país onde há racismo. Onde o racismo existe de uma forma não declarada, você o compreende nas entrelinhas. Eu vou-te contar uma curiosidade. Dei uma palestra em uma escola pública para crianças de baixa renda numa periferia carioca. Após a palestra, as crianças iam para casa e todas elas trocaram de camisa. Elas estavam usando uma camisa com o emblema da escola. E eu perguntei “mas porquê vocês estão fazendo isso?” E eles responderam “se a gente anda na rua com camisa de escola pública, as pessoas ficam nos olhando de uma forma enviesada e nós nem conseguimos entrar em determinadas lojas de departamento”. Tudo porque se elas eventualmente vão numa loja para comprar um chocolate, elas sabem que os seguranças ficam atentos a crianças que vestem uma camisa de escola pública. E o que mais me espanta, Nuno, é que muitas vezes as pessoas que perseguem, que discriminam, também pertencem à minoria discriminada. Você incute esse senso de perseguição entre as pessoas que sofrem a perseguição. É verdade que a escola pública não era assim, trata-se de um retrocesso verificado nos últimos 20 ou 30 anos.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Marine Antunes “Teorias de uma not atinadinha”

Quarta-feira, 12 de junho, 9h30

Domingo, 16 de junho, 14h25

 

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