Nuno Gomes Garcia conversa com Sandra Catarino: «Os Fios ligam-se à metáfora do tempo»

Sandra Catarino, nascida em 1972, formou-se em História e estreou-se na literatura com o romance “Os fios”, publicado este verão pela Casa das Letras.

A história de “Os Fios” – que se apresenta com uma escrita onde o lirismo é predominante, contrastando com a rudeza da vida campesina que descreve – é-nos contada por três mulheres: Violeta, Antónia e Emília.

A noite de trovoada e lobos que abre o romance marcará a história da aldeia. No espaço de poucas horas, os aldeãos veem a chegada de Francesco, um estrangeiro, e da sua pequena filha de três anos, Maddalena, à terra e recebem também a triste notícia da morte de Ana ao dar à luz uma menina, Celeste, que, ver-se-á ao longo da obra, estará condenada à solidão. Estes dois momentos dão o mote para o desenrolar do enredo.

Um livro de capítulos curtos e com uma escrita próxima da poesia que descreve a pobreza de maneira crua, mas sem contudo esquecer que a maior parte das vezes é da pobreza que advém a dignidade.

 

Sandra, quem nos ouve ainda não leu o livro, mas ficará logo intrigado com o título do romance: “Os Fios”. Podes explicá-lo?

Assim de uma forma o mais simples e clara possível, “Os Fios” ligam-se a várias metáforas. Primeiro, os fios ligam-se à metáfora do tempo, o fio da vida, havendo um começo, o meio da vida e o corte desse fio que simboliza a morte. Em segundo surge a metáfora que se liga ao fio de quando se percorre um caminho ou um labirinto. E na história existem momentos de caminhadas em que essa ideia de um fio que permite fazer um percurso também está presente. Depois é óbvio que existem outras metáforas, mas estas são as mais evidentes.

 

No teu romance, logo nas páginas iniciais, Ana morre ao dar à luz Celeste. Uma morte brutal. Violeta, a parteira, que também é uma das narradoras, descreve a cena através das palavras que tu, a escritora, lhe puseste na boca. Ora, o lirismo, a beleza das palavras, estão lá, mas também lá está a crueza quase gore, sangrenta, daquela morte. Um rio de sangue, a placenta que é metida na bacia… Bem, está lá tudo. Consideras que esta “crueza lírica”, deixa-me dizer assim, ao retratar “os assuntos de mulheres” sem eufemismos também serve a causa da emancipação feminina? Ou achas que estou a ir demasiado longe?

Eu não pensei nisso. Eu pensei na realidade de um parto, sobretudo um parto feito nas condições em que eles costumavam ser feitos, por uma parteira que, por mais experiência que tivesse, às vezes se confrontava com situações que não conseguia resolver. Neste caso havia um mau posicionamento do bebé. A minha ideia foi ficar por aí. Nunca tive presente fazer uma história que fosse no sentido de dar esse papel que hoje em dia parece estar tão em voga.

 

A culpa é do meu olhar, ao mesmo tempo masculino e feminista, que foi claramente longe demais.

Pois, não houve essa intenção. Apenas quis retratar algo que seria comum acontecer numa aldeia. Só isso. Havia muitas mulheres em tempos mais recuados que morriam durante o parto.

 

O que ainda hoje acontece em muitos locais do mundo.

Sim, ainda hoje acontece, mas, em princípio, com a evolução da medicina, essa mortalidade diminuiu em muitos sítios. Como o enredo se desenrola num tempo recuado, não propriamente definido, mas recuado, a cena aparece nesse contexto.

 

Fala-nos um pouco das três narradoras?

A narração é entregue a três mulheres porque se parte daquela metáfora do fio do tempo. E o fio do tempo na mitologia está associada às Parcas, que são figuras femininas. Daí termos três contadoras que simbolizam três momentos essenciais. Uma parteira que se certa forma é quem tem a seu cargo o início da vida, o começo desse fio. Há outra que vai tricotando, com a simbologia associada, e fazendo vidas, digamos assim, ou vai desenrolando a vida. E depois há uma que tem simultaneamente visões sobre o futuro, consegue antever determinadas situações, mas também tem uma proximidade com a morte, não que ela seja uma acabadora, no sentido de ir acabar com vidas que estivessem ali numa fronteira entre a vida e a morte, mas de alguém que tem um relacionamento especial com a morte porque é ela que, durante uma determinada altura da vida, vestia os mortos ou quem conseguia perceber se a morte anda por perto. Portanto, as três mulheres têm a ver com as figuras das Parcas e por isso são mulheres e não são homens.

 

Sandra, este teu romance também descreve a profunda pobreza onde vivem os teus personagens. Uma pobreza campestre. Achas que esse tipo de pobreza seria possível na cidade?

Eu penso que sim, há muitas cidades que, isto pensando historicamente, se desenvolveram a partir de uma parte industrial e têm aqueles subúrbios que são de uma extrema pobreza com condições de vida péssimas.

 

Eu pergunto-te isto porque no campo sempre se pode desenvolver uma agricultura de subsistência, enquanto na cidade é mais difícil.

Sim, era isso que eu ia dizer. No campo, tudo está mais próximo da natureza, tens recursos no teu quintal. Enquanto na pobreza urbana lidas com outras dificuldades e em termos de espírito de comunidade pode ser mais complicado de teres ajuda. Sinto que nas cidades e na construção das cidades havia, e ainda existem, lugares de muita pobreza.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: José Rodrigues, autor de “Voltar a ti”

Quarta-feira, 12 de dezembro, 9h30

Domingo, 16 de dezembro, 14h25

 

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