Nuno Gomes Garcia conversa com Sébastien Rozeaux: “A Lusofonia é uma ideia utópica”

Professor universitário em Toulouse, Sébastien Rozeaux publicou há pouco “Préhistoire de la Lusophonie”, um livro que nos conduz à origem da “identidade luso-brasileira”, ou seja, aos primórdios daquilo a que hoje chamamos Lusofonia. Uma “pré-história” de avanços e recuos, desentendimentos, paternalismo pós-colonial e lusofobia, numa mistura quase explosiva de cumplicidades fraternais e rivalidades transatlânticas entre um reino multisecular de propensão colonial e imperialista que procurava “novos Brasis” em África e um novo país de dimensão continental que procurava uma cultura própria numa América que fala castelhano, tentando assim desligar-se do peso colonial da cultura portuguesa.

A perda do Brasil, essa joia do império português, transformou o século XIX lusitano numa longa e progressiva decadência, durante o qual nada poderia ter corrido pior. Invasões napoleónicas, guerra civil, levantamentos populares do género Patuleia, endividamento externo e, por fim, o Ultimato inglês de 1890. Então, enquanto Portugal se afundava na sua própria insignificância, o Brasil imperial consolidava-se, criando uma cultura própria capaz de fazer sombra a uma elite portuguesa habituada à hegemonia cultural da antiga metrópole.

Apesar de tudo, essa construção identitária luso-brasileira, embora tendo sido essencialmente construída através de palavras, discursos e intenções e não tanto através de atos consequentes, foi deixando a sua marca na paisagem política.

 

Sébastien, vamos deixar de lado a “pré-história” por um minuto e vamos focar-nos na atualidade. O português é hoje uma das línguas mais faladas no mundo e possui um grande potencial de crescimento, nomeadamente em África, factos que contrastam com a sua menorização nas grandes organizações internacionais. Falo das Nações Unidas, por exemplo. Podemos então dizer que o português é ao mesmo tempo, por um lado, um gigante demográfico e, por outro, um anão ao nível da sua importância neste mundo globalizado?

Acho que há um leque de explicações que podem explicar o papel do português no mundo. Uma tem que ver com uma concorrência do espanhol. Ainda hoje em dia muita gente que trabalha sobre o Brasil nem sabe que é o português que se fala no Brasil, pensa que é o espanhol e, outras vezes, até julga que o português é uma versão do espanhol. Outra razão tem que ver com os aspetos políticos e económicos. Portugal é um país pequeno, o Brasil está numa situação complicada e os países lusófonos de África não têm tanto poder assim. Então acho que aqui temos assim algumas explicações sobre o peso relativo do português nas Nações Unidas ou em outras instituições. Mas eu acho que isso não significa que vai haver uma marginalização do português. Eu acho que não. Com a riqueza das culturas de língua portuguesa, as músicas, as literaturas, os cinemas, o português, o brasileiro, o angolano, enfim… São vários os domínios culturais que permitem ressalvar o papel da Lusofonia na produção cultural ao nível mundial. Temos então de matizar um pouco essa marginalização do português.

 

E que armas podem ser utilizadas, na sua opinião, pelos Governos dos Estados lusófonos para que a língua portuguesa possa ter maior projeção no mundo? Eu penso por exemplo na Alliance Française, no Instituto Cervantes… Considera que um Instituto desse género promovido pelos Estados lusófonos poderia dar maior projeção à língua?

Sim, poderia ser uma oportunidade. Por exemplo, a rede da Alliance Française é grande, antiga, muito forte. Se bem que hoje em dia já não é tão forte como foi no século XX. Mas sim, um crescimento desse tipo de instituições poderia permitir o crescimento da importância da língua e das culturas lusófonas. Existe algo a fazer nesse sentido. Por exemplo, eu vivo em Toulouse e não existe essa representação institucionalizada da língua portuguesa. Existe por exemplo um Instituto Cervantes, mas não existe um equivalente para a língua portuguesa.

 

Por exemplo, lembro-me que, nos últimos anos, os chineses com o Instituto Confúcio projetaram o seu soft power de uma maneira incrível, oferecendo, entre outras coisas, cursos grátis de mandarim a quem o quiser aprender, o que teve um sucesso tremendo. Talvez exista um Instituto Confúcio aí em Toulouse.

Sim, sim, existe, mas o português não existe. E eu sinto falta disso, até porque existe uma Comunidade luso-brasileira muito forte na cidade.

 

Voltemos então à “pré-história” de que fala o seu livro. Durante esse primeiro século de independência do Brasil, esta ideia de “comunidade de destino” e de “identidade luso-brasileira” não era contrária ao desejo de afirmação nacional e cultural do Brasil? Como reagiram as elites culturais brasileiras a esta ideia embrionária de Lusofonia?

Esse foi um tema de debate muito grande naquela altura, no século XIX. A questão da construção de uma cultura autónoma brasileira foi um processo muito ambíguo e até dialético, no sentido em que existiam duas faces do mesmo problema. Por um lado, existia a vontade de afirmar as raízes europeias do Brasil, porque o Brasil se definia nesta época como um país europeu, ocidental, e não como um país africano ou indígena ou americano. As elites culturais brasileiras reivindicavam essa identidade cultural europeia, ocidental. Então os laços criados com Portugal eram muito importantes porque o Brasil é um país de fundação europeia. E, ao mesmo tempo, por outro lado, existia, por parte dessas mesmas elites culturais, a vontade de afirmar a originalidade, a autonomia da cultura brasileira. É, portanto, uma relação dialética que define essa ideia de construção luso-brasileira. Ou seja, a ideia luso-brasileira permite ressalvar a dimensão europeia, mas existiam pessoas que não se reconheciam nesse vínculo especial com Portugal, dizendo eles que o Brasil tinha de cortar essa relação colonial mantida com Portugal e reafirmar a sua independência, uma independência política que tinha também de ser cultural. Isso tem que ver com a criação das “Letras Pátrias”, de uma literatura nacional que já não dependeria da literatura portuguesa.

 

Sim, Sébastien, na verdade ao ler o seu livro percebe-se que o aumento da importância da Lusofonia converge com o aumento da insignificância de Portugal enquanto potência global. A Lusofonia foi e é uma arma portuguesa para adiar ou evitar a sua irrelevância política?

No fim do livro, eu faço uma comparação, que me parece pertinente, entre a situação de Portugal no século XIX, depois da perda da joia do império português, o Brasil, e a criação desse conceito novo que aparece nos anos 70 do século XX, que é a Lusofonia, e que coincide com a queda definitiva do império português, desta vez em África. Está tudo relacionado. Portugal enfrenta uma situação muito dura ao nível internacional com a perda das suas colónias mais importantes, Brasil, Angola, Moçambique, a Guiné, e tenta resolver essa situação de fraqueza, de um país pequeno, isolado no continente europeu, com a afirmação cultural e política de uma identidade supranacional que, primeiro, foi durante um século a ideia do luso-brasileirismo e, mais tarde, a partir dos anos 70 do século XX, essa ideia da Lusofonia que permite renovar a relação política e cultural com os antigos países colonizados. De certa maneira, a Lusofonia é uma ideia utópica, uma ideia que permite compensar a perda de influência de Portugal, limitando-se assim os efeitos do fim do império.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Susana Moreira Marques, autora de “Maintenant et à l’heure de notre mort”

Quarta-feira, 12 de fevereiro, 9h30

Domingo, 16 de fevereiro, 14h25

 

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