Nuno Gomes Garcia conversa com Valério Romão: «Foi bom reconciliar-me com a França»

Nascido em França, em 1974, Valério Romão partiu para Portugal aos 10 anos de idade. É um raro informático licenciado em Filosofia e publicou o seu primeiro romance, «Autismo», em 2012. Romance que foi publicado em França em 2016 pela Éditions Chandeigne, tendo sido finalista do Prémio Femina, cujo júri é inteiramente composto por mulheres.

Em 2014, publicou o «Da Família», uma coletânea de onze contos que acaba de sair em França, publicado igualmente pela Éditions Chandeigne com o título «De la Famille».

Cada um desses onze contos trata a temática das tensões familiares – um elemento sempre presente no trabalho de Valério Romão – e apresenta situações intensas, dolorosas, muitas vezes absurdas: ora um homem que não recupera do luto causado pela morte da sua mulher, substituindo-a pouco a pouco pelo próprio filho, ora uma família que adota uma criança canibal.

Valério Romão exagera as situações, exacerbando a força dos sentimentos de maneira a demonstrar a violência das relações humanas que por vezes se jogam no seio de uma família.

 

Valério, estes contos são muito duros, exploram situações-limite. Quais as vantagens deste tipo de abordagem? As situações-limite permitem conhecer melhor o âmago de um ser humano?

Sim. Quer dizer, as situações normais, aquelas que no fundo podiam ser relatadas sobre a forma de diário, pelas quais passamos quotidianamente, não nos ensinam muito mais do que aquilo que já sabíamos. A não ser que tenhamos uma perspetiva nova e recente sobre elas. As situações limite… nós só percebemos de facto quais são os limites quando embatemos neles ou quando os ultrapassamos. Desse modo, ensinam-nos como é que se configura a identidade do humano nas suas várias modalidades, porque o humano é uma coisa muita complexa, passe esta banalidade que se diz, não é, mas de alguma maneira fazem-nos ver que o humano tem uma configuração que não é ilimitada.

 

E a exploração da família como campo de batalha, com os seus conflitos, pequenas guerras… O que é que te leva a escrever tanto sobre as relações familiares?

É um território que parece ser bastante fértil a nível de criar situações de tensão e de conflito, e a literatura alimenta-se situações que envolvem alguma intensidade. A família, para mim, é o terreno de eleição para encontrarmos uma coisa que nos é comum a todos. Portanto, sendo comum e tão profícua a produzir literatura… é um filão que merece ser explorado.

 

Enquanto escritor que já escreveu romances, peças de teatro… podes dizer-nos se existem vantagens quando se escreve contos? Consegues, por exemplo, escrever contos enquanto estás a trabalhar num romance?

Normalmente, não o faço. Quando estou a trabalhar em qualquer coisa, dedico-me só a isso. Aliás, quando escrevo um romance, durante a sua escrita, eu praticamente não leio ficção. Tenho algum receio de ficar contaminado ou de pensar «é pá, este gajo é muito bom», e fico muito inseguro e prefiro manter-me no meu cantinho a escrever as minhas coisas. Em relação ao conto. Um conto pode contar uma história e pode ser feito num dia, ao contrário de um romance que é um trabalho profundo, é uma maratona. Um conto é um exercício com o qual podes aprender muita coisa num espaço muito curto de tempo. E há ideias que funcionam muito bem em conto e nada bem em romance.

 

Às vezes, o que nos acontece é começarmos a escrever um conto e chegarmos à conclusão que esse conto dará um romance.

Sim, por exemplo, «O Autismo» começou por ser um conto. Quando o terminei pensei «não, isto dá um romance».

 

Sim, e «O Autismo» terminou num romance que, tanto em Portugal como aqui, a tradução francesa, teve um belo acolhimento, nomeadamente junto da crítica francesa. Tu estavas à espera? E, tendo tu nascido em França, o que representou para ti esse bom acolhimento do teu trabalho?

Não estava à espera. Foi absolutamente inesperado. No que diz respeito a França, e mesmo a Portugal, eu sou um novato, digamos, não tenho nome, não tenho qualquer importância fora do pequeno círculo das pessoas que leem e que gostam de literatura. Foi bom encontrar esse acolhimento e foi bom ser recebido de uma forma simpática em França, já que quando eu estive aí, e quando eu cresci aí, não achei que fosse tão simpático assim. Foi bom reconciliar-me com a França.

 

Então vamos falar um pouco dessa tua relação com a França. Numa entrevista, salientas-te que, quando eras criança e vivias em França, o teu pai te dizia que da porta de casa para dentro era Portugal. É verdade?

Sim, era uma espécie de embaixada.

 

Pergunto-te se essa regra paterna foi, por um lado, importante para a relação forte que mantiveste com Portugal desde tenra idade e se, por outro lado, dificultou a relação que mantiveste com a França?

A relação difícil que eu possa ter tido com a França teve a ver com o facto de eu não me sentir integrado, pois não se coibiam de me lembrar que eu não era francês.

 

O teu nome também não ajudava nada. A pronunciação de Romão…

É, não ajudava. Não é Valéry. Logo aí, já dava para desconfiar. Em casa, e eu agradeço sempre ao meu pai por isso, a regra de só falar português ajudou-me desde muito cedo a ser praticamente bilingue e a não ter tantas dificuldades de integração quando regressámos a Portugal.

 

Valério, a ver também pelo teu acolhimento aqui em França, achas que a literatura portuguesa começa finalmente a encontrar o seu lugar, por muito pequeno que seja ainda, no meio literário francês?

Acho que sim. Fez-se um trabalho de fundo nos anos 80 e 90, e o fenómeno Saramago também contribuiu para isso de forma decisiva com o Nobel. O Lobo Antunes também é um nome internacionalmente reconhecido no mundo da literatura. Portanto, desbravaram-se alguns caminhos. E acho que ao nível da literatura, embora sejamos um país de facto pequeno, temos muita coisa boa a apresentar, já não digo apenas em França, mas mundialmente. Temos uma literatura convincente, única.

 

Valério, para terminarmos, aconselha-nos um livro.

Estou a ler um livro que me está a surpreender. Não está traduzido para português. É do Richard Brautigan e chama-se «Trout Fishing in America».

 

«A Pesca da Truta na América», não é?

Sim, eu creio que está traduzido para francês. É um dos livros do cânone da literatura dos EUA.

 

Nota: «La pêche à la truite en Amérique», Éditions 10/18 (1978)

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado:

Quarta-feira, 11 de abril, 8h30

Domingo, 15 de abril, 14h25

 

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