Nuno Gomes Garcia conversa com… Cristina Drios: “No fim da guerra, muitos soldados regressaram a Portugal a pé”

Cristina Drios é autora de três livros: “Historias Indianas”, um livro de contos que venceu, em 2012, o Prémio Literário Cadernos do Campo Alegre “Novo Autor, Primeiro Livro”; “Os Olhos de Tirésias”, publicado em 2013 pela Teorema e que foi romance finalista do Prémio Leya; e, por fim, em 2016, o romance “Adoração”, que incide sobre a vida do pintor Caravaggio.

Por se estar a aproximar o centenário da Batalha de La Lys, o triste epílogo da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial – 1341 soldados portugueses mortos (num total de 2.100 baixas lusas durante o conflito), 4.626 feridos e 7.440 feitos prisioneiros – achamos por bem conversar sobre “Os Olhos de Tirésias”.

Este romance, narrado em dois tempos distintos, o mais recuado acompanha o personagem Mateus Mateus, um soldado português da Guerra de 14-18, que conta a sua história; e o outro, que se passa nos nossos dias e trata um momento difícil da vida da neta de Mateus que, ao encontrar um retrato daquele distante avô, resolveu escrever um romance sobre esse seu antepassado. Cristina Drios escreveu, então, um livro dentro de outro livro.

 

Antes de qualquer outra pergunta, ao contrário do que muitos leitores poderão pensar, tu não és a neta retratada no romance?

Não, não sou eu. A personagem é totalmente inventada, mas, de facto, muitos leitores confundem-me com a personagem, a neta do soldado que fez parte do CEP (Corpo Expedicionário Português), que também é autora… Talvez esse facto, propositado, gere essa impressão nos leitores porque foram muitas as pessoas me perguntaram se o meu avô tinha participado na guerra.

 

E eu fui uma dessas pessoas.

Sim, foste. Mas não, que eu tenha conhecimento, ninguém da minha família participou na guerra, mas conheço muitas pessoas que tiverem familiares na Flandres e que ainda partilham essa memória. Foi isso, aliás, que me fez querer escrever sobre este tema.

 

Uma das coisas que mais intrigam no teu romance é o próprio título. Podes explicar-nos o que significa?

Sim, muito brevemente, porque a explicação seria longa. Tirésias é um personagem da mitologia grega, um adivinho cego, que os deuses castigaram cegando-o, mas dotando-o em contrapartida do dom da previsão. Escolhi este título para funcionar como metáfora de todo o livro, porque temos várias personagens com esses dons de premonitórios, que anteveem o futuro e outras que não veem o que está mesmo em frente dos seus olhos. Inclusivamente, temos Hitler, também, como uma das personagens, que quando esteve nas trincheiras, já muito perto do final da guerra, foi gaseado e sofreu um episódio de cegueira histérica, tendo sido internado num hospital que eu descrevo no próprio livro, edifício esse que ainda existe: Château Blanc, em França, perto da fronteira belga. Também descrevo outros locais, por exemplo o quartel-general português na aldeia de Saint Venant e toda a região do norte de França onde os soldados portugueses defendiam doze quilómetros de frente.

 

E acaba tudo isso por culminar na Batalha de La Lys, está para fazer 100 anos.

O centenário destes eventos históricos deverá ser alvo de justas referências. Não uso a palavra “comemorações” propositadamente pois nada há a comemorar numa guerra, especialmente esta que tanto sofrimento causou. De qualquer forma, é um momento singular da nossa História e deve ser lembrado.

 

É de facto muito importante falar contigo. Sabes que a Diáspora portuguesa em França, até por uma questão de proximidade, atribui grande importância ao Corpo Expedicionário Português que lutou na Flandres. Aliás, tanto eu como tu, que já escrevemos romances que abordam esta temática, até já participámos em alguns eventos públicos em Paris e em Bruxelas sobre o conflito de 14-18. O que te pergunto é se em Portugal, onde vives, também se dá essa importância?

A importância que sempre se deu em Portugal a esse momento histórico é pouca, infelizmente. Fala-se pouco, conhece-se pouco e estuda-se pouco nas escolas. Talvez agora, em virtude do centenário, as coisas comecem a mudar, mas creio que a importância dada deveria ser maior, pois é um momento importante que envolveu um contingente enorme, não só em França, mas também em África e que faz parte da nossa História.

 

Faz parte, claro, e até temos em cada pequena vila e cidade portuguesa um monumento erigido aos combatentes do CEP.

Encontramos esses monumentos recorrentemente, sobretudo no norte de Portugal de onde eram naturais a maior parte dos combatentes, mas também noutras regiões.

 

E que, portanto, teve um grande impacto na época. Tu, não sendo historiadora, és advogada, mas tendo um conhecimento profundo desse período, diz-me qual o balanço que fazes da participação portuguesa na Grande Guerra?

Essa participação não correu bem a Portugal por vários motivos, nomeadamente políticos. Do ponto de vista humano foi um perfeito desastre. As condições em que estes soldados foram para França e a forma como lá viveram durante cerca de dois anos foram terríveis. Isto já para não falar do massacre de 9 de abril de 1918 em La Lys. Houve mortos, feridos, mas também muitos que foram feitos prisioneiros pelos Alemães. Esses prisioneiros, mesmo depois de terminada a guerra, passaram muito tempo nos campos, não foram logo libertados, e tiveram muitas dificuldades para regressar a Portugal, pois o Governo da altura praticamente os abandonou.

 

Abandonados pelo então Presidente Sidónio Pais, um germanófilo autoritário, que foi assassinado a tiro na Estação do Rossio em dezembro de 1918.

Exatamente. Por outro lado, devemos contextualizar e dizer que o CEP foi combater para França, sob o outro Governo, sob a égide dos Britânicos, com o seu apoio logístico, que a dado momento falhou. E, portanto, além do desinteresse do Sidónio Pais, já há muito não havia também apoio logístico para trazer os soldados de volta. Já contei esta história várias vezes: muitos soldados regressaram a Portugal, atravessando França e Espanha a pé.

 

Incrível. E claro que todos esses acontecimentos acabaram por ter impacto no próprio regime, na própria Primeira República, que acabou por desembocar no golpe fascista de 1926 que instaurou o Estado Novo.

Sim, claro, todas essas circunstâncias ligadas à participação portuguesa na Grande Guerra facilitaram o aparecimento de figuras como o Salazar.

 

E para terminar, gostaria que nos aconselhasses um livro.

Por razões didáticas, neste momento, estou a ler clássicos, embora também goste muito de ler escritores contemporâneos. Acabei neste momento de reler a peça “Antígona” do Sófocles.

 

Ora, aí está um clássico na verdadeira aceção da palavra.

Absolutamente! Acontece que é, de facto, uma verdadeira obra-prima escrita há milhares de anos: está lá tudo sobre a natureza humana. E, ao contrário do que se poderia julgar, não é nada complicado de ler, é um livro muito acessível. Recomendo, portanto.

 

 

Entrevista realizado no quadro do programa “O livro da semana” na rádio Alfa

Próximo convidado:

Joaquim Gonçalves, livreiro premiado de Sines com a livraria “A das Artes”.

Quarta-feira, 31 de janeiro, 8h30

Domingo, 04 de fevereiro, 14h25