Onésimo Silveira: Este homem não teme o julgamento da história…

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E nem podia! Quem esteve do lado certo da história não tem medo do seu julgamento!

Onésimo Silveira esteve do lado certo da história em 1963 com o seu ensaio “Consciencialização na literatura caboverdeana”, publicado pela Casa dos Estudantes do Império em Coimbra onde estudava.

Até então era editado na Praia o “Boletim Cabo Verde” (de 1949 até 1963) mais os dois números do “Suplemento Cultural” de junho e julho de 1962. A chamada geração “Boletim Cabo Verde” revelou uma plêiade de jovens poetas, contistas e outros prosadores, desde o ensaio à crítica literária. Cito aqui Arménio Vieira, Corsino Fortes, Mário e Aguinaldo Fonseca, Yolanda Morazzo, Terêncio Anahory, Guilherme Rocheteau, Teobaldo Virgínio, Ovidio Martins… e porventura Amilcar Cabral, ainda jovem estudante.

O jovem Onésimo, também ele menino da geração pós-claridosa, marca a diferença do ponto de vista das tendências literárias do seu tempo. Foi, porventura, um dos mais aguerridos anticonformistas da geração dos anos 60, e há quem considere o seu ensaio como uma pedra no charco, rompendo com a linha auto-contemplativa de “Claridade” que considerou inadequada e obsoleta face à realidade colonial.

O jovem “Cuxim” estava do lado certo da História ao apontar o dedo ao colonialismo português, ainda que de forma velada. Outras plumas vão seguir o mesmo caminho, algumas erigindo-se em arma de contestação.

Enquanto a França e o Reino-Unido se resignavam em conceder a independência às suas colónias em África, Salazar assobiava para o lado e a guerra anticolonial eclodia na Guiné.

Silveira escolhe o lado certo da História e passa a representar o PAIGC na Suécia onde reside.

Mas em 1973, quando foi a Conakry para as exéquias de Cabral, não gostou do que viu: a “unidade Guiné-Cabo Verde” era mais um dogma político do Partido do que uma realidade, e a tensão era palpável. Sete anos depois, com o golpe de Estado de Nino Vieira, em novembro de 1980, certamente pensou – “eu já sabia”. Tinha razão, o Onésimo.

Já nas vésperas da independência, desentende-se com o PAIGC e bate com a porta. O democrata convicto, que vivia na Suécia e não em Moscovo, já devia pressentir os desmandos do futuro partido-Estado que havia servido com zelo. Deve ter-se sentido bastante incomodado ao ver caboverdeanos seus patrícios serem encarcerados no Tarrafal enquanto o povo gritava vivas à “unidade Guiné-Cabo Verde”!

Onésimo sabia que a manipulação das consciências era a marca dos regimes totalitários, podendo ir até à negação do seu semelhante. Estava do lado certo da História ao bater com a porta.

Quem ficou a perder foi o PAIGC pois em 1976 Silveira obtém o seu doutoramento pela Universidade sueca de Upsala, passando a servir como funcionário diplomático das Nações Unidas.

Em 1986 fui convidado ao simpósio comemorativo dos 50 anos de “Claridade”, e lembro-me do seu discurso soando como uma mea culpa perante Baltasar Lopes e Manuel Lopes, os fundadores presentes. No fundo, quis dizer que ninguém devia ser julgado fora do seu tempo e do seu contexto existencial. Mais uma vez, do lado certo da História…

Também me lembro da sua reaparição espetacular em 1990, ato contínuo à abertura política. Na hora certa, como bom democrata que era, calcorreando as ruas de S. Vicente de megafone na mão no seu “suzuki” sonorizado. Fez campanha “tambour battant” pelo MpD, mas por conta própria, sem militar no novel partido. Com os seus ares atípicos, seu nó “butterfly”, seus suspensórios e sua cabeleira ao vento, houve quem pensasse, não o conhecendo, que o homem era algum lunático extravagante.

Escreveu então “A tortura em nome do Partido Único”, com depoimentos de vozes discordantes denunciando as sevícias que sofreram sob o regime. Era chegada a hora da mudança, e mais uma vez Onésimo Silveira estava do lado certo da História.

Nenhuma pasta lhe foi atribuída no Governo de Carlos Veiga, mas Onésimo ganhou três vezes as eleições para a Câmara Municipal de S. Vicente e deixou a sua marca como autarca. A termo “l’enfant terrible” se afastaria do MpD, guardando as suas distâncias com o Primeiro-Ministro Carlos Veiga. Chegou até a denunciar um “estado de fome” em S. Vicente por alegada incúria do governo central!

Onésimo tentou quebrar a dualidade MpD/PAICV fundando, em 1998, o PTS, mas o seu partido não deu em nada, como não deu em nada a sua inconclusiva candidatura à Presidência da República em 2001.

Em vez disso foi nomeado Embaixador em Lisboa, deixando estupefactos os seus correligionários que não compreenderam essa súbita reaproximação ao Presidente Pedro Pires que tratara de ditador 10 anos atrás, declarando a guerra ao PAICV. Fica o mistério desse arranjo político que o isolou dos seus seguidores e admiradores.

Muitos viram em “Cuxim” um político calculista, inconsequente, movido por interesses que chegaram a imperar sobre os escrúpulos da moral. Mas, diga-se o que se disser, uma coisa é certa: Onésimo Silveira não foi uma pessoa qualquer. Homem do mundo com uma cosmovisão da vida, foi também homem de causas e convicções – e lutava por elas.

Uma das suas causas era a regionalização administrativa, por uma distribuição mais equitativa da insularidade, seus recursos e falta deles. Nesse particular, a ilha de S. Vicente, que o viu nascer, perdeu um dos seus mais combativos porta-estandartes.

Ficaram conhecidas as suas tiradas irónicas contra o Primeiro-Ministro José Maria Neves e a sua “República de Santiago”.

Também, a falar ou a escrever, nenhum outro político se media com este intelectual e homem de letras. “Cuxim” para o povo, convivia e jogava uril com qualquer pé-descalço, mas em seus comícios e discursos falava o Dr. Onésimo, em bom português vernáculo, com a maior naturalidade deste mundo, opondo-se sem complexos ao Alupec e seus mentores. Verdadeiro “mucim de Soncent”, Cuxim, aliás Dr. Onésimo, era muito querido pelo seu bom povo que três vezes o sufragou nas urnas.

Cabo Verde perde um dos seus mais exímios tribunos, de uma retórica ímpar que só ouvi num Abílio Duarte, antigo Presidente da Assembleia Nacional, Aristides Pereira ou António Mascarenhas Monteiro que foram Presidentes da República.

Cala-se o poeta e escritor, homem de cultura, ensaísta e polemista, um político como poucos, diplomata de requinte, também conhecido pelo seu caráter insubmisso, por vezes imprevisível. Desaforo não engolia, de onde quer que viesse – e é, curiosamente, essa sua irreverência que o “empurrou”, muitas vezes, para o lado certo da História… enfim, nem sempre, mas ninguém é perfeito.

E quem viveu do lado certo da história, não tem medo do seu julgamento!

 

Mantenhas da terra-mãe, 29 de abril 2021

David Leite

 

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