LusoJornal | Mário CantarinhaOpinião: A realidade afetiva e o delírio social_LusoJornal·Opinião·9 Maio, 2025 Há mulheres que amam como quem se lança ao mar sem saber nadar. Um gesto irracional, lírico, ensinado em voz baixa pela cultura, pelo cinema, por uma avó que levou calada, diante dos filhos aterrorizados, mas também calados, por letras de músicas que confundem obsessão com ternura. Não se trata de ingenuidade, trata-se de um condicionamento emocional mascarado de romantismo. A história de cada mulher que, uma e outra vez, volta para os braços de quem a fere e que às vezes não sai de lá com vida, é menos individual do que nos convém acreditar. A psicanálise chama-lhe compulsão de repetição, a filosofia aponta para o niilismo afetivo, mas a sociedade, no fundo, ainda diz baixinho: “Se calhar, ela também provocou”. O caso de Marie Trintignant é um desses exemplos onde a tragédia deixou de ser apenas simbólica. Em 2003, a atriz francesa foi brutalmente espancada pelo companheiro, Bertrand Cantat, o carismático vocalista da banda Noir Désir, adorado por multidões e promovido como um intelectual rebelde do rock francês. Marie morreu dias depois, em coma. Cantat foi condenado a apenas oito anos, dos quais cumpriu quatro. E depois? Voltou aos palcos. Foi entrevistado com reverência. Gravou discos. A sociedade, mecanismo bem oleado de esquecimento seletivo, ofereceu-lhe uma segunda oportunidade em tempo recorde. A ele. A ela, nada. Nem sequer uma memória limpa. Nos jornais, no julgamento mediático, surgiram perguntas como: “Mas porque é que ela estava com ele? Porque não saiu do quarto?” A narrativa social é engenhosa: patologiza a vítima e reabilita o agressor. A mulher morre, de facto ou metaforicamente e o homem sofre, claro, mas recebe empatia. Diz-se que foi o álcool, o temperamento, a paixão intensa. Shakespeare em versão tabloide. O amor como álibi. Quando um homem arrasta a mulher para o abismo dos seus demónios: álcool, ciúme, solidão existencial, raiva ancestral, fá-lo muitas vezes sem sequer ter consciência plena disso. Ele próprio é um naufrágio ambulante. Mas não é inocente. E a sociedade também não o é. Crescemos a ouvir que o amor tudo suporta. Que ser mulher é cuidar. Que os homens são frágeis e merecem compreensão. Amy Winehouse também acreditava que podia salvar o homem que a destruía. Morreu aos 27 anos, deixada por um sistema que a explorava em palco e a abandonava no backstage da vida. “I died a hundred times”, cantava ela em Back to Black. E cada vez era literal. A estatística é crua: segundo dados do Observatório Europeu da Violência Contra as Mulheres, mais de 80% das vítimas de feminicídio tinham, antes da morte, denunciado ou confidenciado abusos anteriores. Mas denunciar é difícil quando os próprios tribunais e as mesas de jantar, repetem o mesmo padrão: “Ele não parecia esse tipo de homem”. Como se houvesse um “tipo”. Como se o mal viesse com manual de instruções ou tatuado na testa. Simone de Beauvoir escreveu que “toda opressão cria um estado de guerra”. Talvez amar, nessas circunstâncias, seja entrar em território de guerra sem capacete. A mulher que fica, que volta, que ama até à exaustão, acredita que o seu amor pode ser uma âncora para ele. E acaba por se afundar com ele. “O problema com o amor é que é como psicanálise: demora anos, custa uma fortuna e no fim provavelmente a culpa é da mãe”. Isto pode ser dito hoje como poderia ter sido escrito por Freud. Porque tudo começa na infância. Na forma como ensinamos as raparigas a amar e os rapazes a ser amados. O mais perturbador nisto tudo é a sensação de déjà-vu. Como se esta história já tivesse sido contada, já tivesse acontecido mil vezes, com nomes diferentes, mas o mesmo final. A crónica repete-se. A dor também. E a sociedade, entre um artigo de opinião e outro, segue em frente. Talvez um dia alguém escreva uma nova canção, onde o amor não precise de mártires. Até lá, resta-nos a literatura, as estatísticas e o eco de uma frase de Nina Simone: “You’ve got to learn to leave the table when love is no longer being served”. Mas nem todas conseguem. Nem todas sobrevivem para isso. . O Ministério do Interior francês alerta para números que se assemelham a terrorismo doméstico e social. Só em 2024, foram registados mais de 245.000 casos de violência doméstica em França, dos quais 87% tiveram como vítimas mulheres. Os feminicídios mantêm-se num patamar alarmante, com 118 mulheres assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros, um número que se mantém quase estável face ao ano anterior, demonstrando a persistência e gravidade do fenómeno. Estes dados oficiais, divulgados pelo próprio Ministério, levam muitos especialistas a falar em terrorismo íntimo, um padrão sistemático de violência enraizado em desigualdades estruturais. No entanto, vozes reacionárias continuam a distorcer o debate, acusando os movimentos feministas de exagero, histeria ou até de serem os verdadeiros culpados por um “clima de tensão”. “Se elas não se calassem, isto não acontecia” – este tipo de retórica, cada vez mais visível em redes sociais e comentadores de direita radical, tenta inverter a lógica da responsabilização: não é o agressor que está em causa, mas sim quem denuncia a agressão. Trata-se de uma forma de irresponsabilidade social e política, que perpetua a violência e desacredita o combate pela igualdade de género. Enquanto isso, organizações feministas e de apoio às vítimas alertam para a crónica falta de recursos, tanto ao nível da justiça como dos abrigos de emergência, com menos de 50% das ordens de proteção pedidas a serem concedidas pelos tribunais e esperas superiores a três meses para acesso a alojamento seguro, nalgumas regiões. Em 2025, os números continuam a exigir mais do que discursos, exigem políticas públicas firmes e vontade política. E não, a culpa deste “chinfrim todo” não é das feministas. A culpa continua a ser da violência que muitos ainda se recusam a nomear. . Cristina Branco