Opinião: Memórias de juventude, memórias de França

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Sou natural de uma aldeia do concelho do Fundão, na zona dito do Pinhal, perto das Minas da Panasqueira, onde meu pai trabalhou como pedreiro

Em março de 1962, o meu pai rumou a Lille. Tinha conseguido carta de chamada e contrato de trabalho e por isso a sua ida foi organizada pela então Junta de Emigração.

No ano seguinte, o meu pai apresentou às autoridades francesas o pedido de reagrupamento familiar e em dezembro desse ano recebemos da Junta da Emigração em Lisboa os passaportes e os bilhetes de comboio e lá vamos rumo ao desconhecido, ao incerto.

O meu pai desloca-se a Portugal para fazer a viagem connosco e dez dias antes do Natal, em pleno inverno, lá vamos nós, minha mãe, minha irmã com 10 anos e eu com 11, a caminho do desconhecido, para um país de língua diferente.

Dessa viagem recordo a viagem única e as locomotivas a vapor até Medina del Campo e depois via dupla e locomotivas elétricas. Recordo ainda a muita neve nos Pirenéus / País Basco e a quantidade de túneis atravessados. Em Irun é-nos servido o jantar, batatas fritas e ovos estrelados.

Passaporte de coelho não conheci.

Transitar de uma aldeia da Beira Baixa, espaço totalmente aberto, onde as crianças viviam na rua, para uma cidade no estrangeiro, sem conhecimento da língua, sem amigos, sem referências, espaço fechado, foi difícil, tanto mais que no início de janeiro a minha mãe viria a ser hospitalizada durante 5 semanas, tempo esse sem poder ver os filhos, sem os filhos poderem ver a mãe, pois as entradas no hospital estavam vedadas a menores de 14 anos. Hoje, felizmente, já não é assim.

O ingresso na escola, salvar-nos-ia.

Como a escolaridade em França, nessa altura, era obrigatória até aos 14 anos, ingressámos na escola elementar, eu numa escola pública e a minha irmã, por influência do patrão do meu pai, numa escola católica. Fomos bem recebidos e bem tratados e éramos como que OVNI’s, pois crianças emigradas nas escolas eram escassas e nós – minha irmã e eu – éramos os únicos nas nossas escolas.

Em maio 1965 assistimos na capela St Etienne, em Lille, a uma missa celebrada por um padre dos Olivais. A única mulher presente era a minha mãe e as únicas crianças eram a minha irmã e eu. Aliás, a foto publicada na Croix du Nord (diário cristão), que nos fotografou, trazia como indicação “Les enfants d’une grande famille”.

Nesse ano de 1965, as primeiras férias em Portugal. Quando o Sud Express oriundo de Paris chegou a Irun, o comboio espanhol estava já apinhado de gente e de malas. De Irun à Guarda, no Sud Express, sem lugar sentado e com as casas de banho cheias de malas e de sacos.

Na estação terminal no Fundão, descubro que o comboio era puxado por uma locomotiva a vapor construída em Fives-Lille, bem perto da nossa casa.

Em 1966, aos 14 anos, sou o primeiro estrangeiro na cidade a conseguir o Certificat d’Études Primaires (CEP), o que mereceu um louvor do Maire e deixou orgulhos os meus pais.

Nesse ano novamente férias em Portugal e durante a viagem de comboio jogou-se o tão esperado Portugal-Brasil, do Campeonato do mundo, em Inglaterra, com 3-1 a nosso favor e o Pelé a lesionar-se.

Durante as férias na aldeia natal, a minha antiga professora em Portugal conseguiu convencer o meu pai a ficarmos em Portugal, eu e minha irmã, para prosseguir os estudos, a minha irmã apenas com a terceira classe e eu, com a quarta classe, mas sem o exame de admissão ao liceu, obrigatório na altura.

Assim, eu e minha irmã ficamos em Portugal, em estabelecimentos privados de ensino e em regime de internato, longe dos nossos pais e da aldeia natal. Mas talvez por temos os nossos pais longe, no estrangeiro, fomos bem recebidos e temos boas recordações. Hoje sou o principal responsável da “Amicale des anciens élèves” do colégio Instituto de Santo António, em Castelo Branco.

Cinco anos depois, em 1971, com o Bac português concluído, regresso a Lille para me inscrever na Faculdade de Ciências Económicas, onde viria anos mais tarde a concluir a “Maîtrise”. A minha irmã, depois de concluir o liceu em Castelo Branco, optou pelo Instituto Superior Técnico em Lisboa, formando-se em Engenharia Civil.

Para a viagem, não dispondo de licença militar, vejo-me obrigado a passar a fronteira de Vilar Formoso “a salto”. Com a ajuda de companheiros de viagem escondo-me no comboio, durante duas horas e meia, “emergindo” apenas depois de passar Salamanca.

Em Lille, a partir de 1972, começo a dar aulas de alfabetização a amigos e colegas de meus pais, em salas paroquiais e em 1973 começo a colaborar com a Association de Cooperation Franco-Portugaise de Tourcoing, cujo Secretário, o João José Robalo, era professor de Geografia nos liceus franceses.

À Association de Cooperation Franco-Portugais de Tourcoing, aos senhores Mota, Reis e Bica (Presidente, Vice Presidente e Tesoureiro), mas principalmente ao Senhor Robalo, se devem das ações mais dinamizadoras e relevantes em toda a Comunidade portuguesa em França e grandes impulsionadores do ensino de português no norte de França, experiências depois seguidas em outras localidades, como por exemplo pelo José Sabino em Roubaix e o Belmiro Ramos em Lille.

No âmbito da associação, comecei a dar aulas em Tourcoing, na Maison de Jeunes des Orions, fazendo a viagem a partir de Lille com o amigo e colega António Guerra, que mais tarde viria ser Delegado Escolar no Consulado de Portugal.

Quando se deu o 25 de Abril, a associação tinha já aulas em Tourcoing, em Roubaix e em Perenchies. Destaco o trabalho do José Sabino em Roubaix, do Pina em Armentières/Perenchies.

Os alunos de Armentières deslocavam-se a Perenchies em autocarro alugado pela associação. Nas aulas de Tourcoing vinham alunos de Comines e de Wervicq Sud, transportados também de autocarro.

Os professores da associação eram maioritariamente estudantes universitários com o liceu português e antigas professoras (regentes ou diplomadas) que, por motivo de casamento, haviam deixado o ensino oficial e rumado a França.

Em abril de 1975 em nome da associação entrego no Consulado de Portugal em Lille, ao novo Cônsul Dr Duarte de Jesus, uma lista com 40 candidatos ao exame da 4ª classe (ensino obrigatório em Portugal, recordo), uns adolescentes e outros adultos.

Foi uma autêntica bomba!

Se por um lado, o Senhor Cônsul de Lille e o Senhor Embaixador em Paris (Dr. Coimbra Martins) eram de opinião que todos os Portugueses, dentro ou fora de Portugal, têm os mesmos direitos à educação, nunca fora de Portugal (e antigas colónias) se tinham realizado até então exames oficiais.

Alguém se lembrou de referir que a maioria dos professores da associação possuía o curso dos liceus portugueses, pelo que o Governo português, com o grande apoio da nossa Embaixada, tomou a decisão de contratar-nos para primeiro realizar os exames e depois para se dar início ao ensino oficial de português dentro do ensino escolar francês e nas associações, ensino previsto nas convenções entre os 2 países.

Fomos logo contratados 9 professores, com a missão de realizar os famosos exames. Tendo sido escolhido pelos colegas para Coordenar o grupo, participei como responsável pelas provas e logística. Os exames, escrita e oral, foram concentrados num só local.

Foi um dia de festa, dificilmente apagável na minha memória.

A minha primeira missão oficial foi a deslocação a Paris para a receção na Embaixada com o Senhor Presidente da República, General Costa Gomes.

Com o Senhor Cônsul começámos a trabalhar na preparação do ano letivo 1975/76 e como que por milagre, todas as portas se abriram, desde a Academia, Inspetores Departamentais, Municípios.

Não posso deixar de referir que a Mairie de Tourcoing me entregou mil e duzentos cadernos e um retroprojetor para apoio ao serviço letivo em Tourcoing, que viria a ocupar 2 professores a tempo completo, o Joaquim Caessa e eu.

Como pretendia continuar os estudos depressa cheguei à conclusão que não teria disponibilidade para participar na Coordenação do trabalho, pelo que o António Guerra me substitui, sendo Coordenador do ensino durante vários anos.

Fui professor no Consulado até 1985, optando seguidamente por uma carreira profissional compatível com a minha formação em economia.

Nesses primeiros tempos, cresceu o número de professores para quase vinte e abriram-se cursos oficiais em Lille, Fives, La Madeleine, St André, Villeneuve d’Ascq, Roubai, Hem, Croix, Tourcoing, Comines, Wervicq Sud, Perenchies, Armentières, Cambrai-Valenciennes, zona de Dunkerque…

Em todas as localidades onde havia crianças portugueses em número suficiente, a escola portuguesa lá chegou, dentro ou fora do horário escolar, em escolas públicas ou católicas, em casas de juventude…

Temos um dever de memória par com as pessoas que mais contribuíram para este enorme sucesso, a nível associativo como os Senhores Robalo, Reis, Sabino, Pina, Ramos e tantos outros e a nível oficial o Cônsul Dr Duarte de Jesus, o Embaixador Dr Coimbra Martins, o António Guerra e como Delegado escolar e tantos outros…

Pessoalmente e conjuntamente com o Belmiro Ramos (falecido no ano passado com a bonita idade de cem anos) e o João Martins criámos e fomos dirigentes da Associação Sporting Clube dos Portugueses de Lille, cuja principal preocupação foi sempre a de ministrar aulas a lusodescendentes.

O ensino oficial realizava os exames da quarta classe e o sexto ano/ciclo, exames importantes para quem desejasse ingressar no ensino em Portugal, consequência de um complicado processo de equivalências de estudos que obrigava o aluno a ter o exame final do ciclo anterior (quarto, sexto ou nonos anos). Por exemplo, um aluno que tivesse completado a “quatrième” francesa só podia inscrever-se em Portugal no então nono ano (antigo quinto ano) se anteriormente tivesse obtido com êxito no exame de equivalência ao sexto ano!

Ainda me recordo de uma situação com que me deparei uma vez, em Villeneuve d’Ascq, quando um pai vem ter comigo muito preocupado, dizendo-me que a filha de 13/14 anos, a frequentar a “quatrième” não quer regressar a Portugal pois não queria ir para a escola primária, uma vez que não tinha as equivalências. No final do ano letivo, a rapariga fez os exames da quarta classe e da sexta classe (quarto e sexto ano) e ficou bem em ambos, o que lhe permitiu ingressar automaticamente em Portugal no nono ano. Anos depois era enfermeira parteira em Coimbra.

Em 1989, conheci na Amicale de Parents Luso-Francaise de Roubaix (dirigida pelo alentejano José Sabino) duas raparigas (Elisa Lourenço e Rosa Algarvio) e um rapaz (António Marrucho, atual correspondente do LusoJornal em Lille), estudantes universitários, recém-chegados de Portugal e que na associação ali davam apoio administrativo e a nível da biblioteca.

Em colaboração com o José Sabino angariámos um grupo de uma vintena de jovens interessados no exame de equivalência ao nono ano (que até então não se realizara em França) e convencemos estes 3 estudantes a lecionar o curso (língua portuguesa, história/geografia de Portugal).

No final do ano escolar, solicitado a realização do exame em França, a administração escolar em Paris aceitou e encarregou-me de toda a organização das provas.

As provas escritas dos exames foram enviadas de Lisboa. A prova escrita de língua portuguesa foi corrigida pela professora Fátima Ferreira, professora no Liceu Internacional de St Germain-en-Laye, perto de Paris, que posteriormente se deslocou a Roubaix para a realização das provas orais. Fui responsável pela constituição do júri de exame e da correção das provas escritas de História/Geografia de Portugal.

O sucesso do curso de equivalência ao nono ano por parte da Amicale em Roubaix teve seguimento, pois no ano seguinte a associação de Lille organizou em La Madeleine idêntico curso, orientados pela professora Margarida Fernandes e eu próprio.

O meu empenho na vida letiva em França continuou até 1985, numa altura em que uma escola onde lecionava, em Tourcoing, representava a língua portuguesa no âmbito do programa “Enseignement de Langues et Cultures d’Origine (ELCO)” da “Direction des Ecoles”, em Paris, programa financiado pela União Europeia. Participei com o “Directeur de l’École” e com o “Inspecteur Pedagogique” em muitas reuniões com a Administração francesa e representantes de outras Comunidades, participado em seminários em Nancy, Lyon…

A primeira vez que andei no TGV foi no percurso Paris-Lyon, e logo em primeira classe, para participar num seminário no convento de “l’Arbrelle”, perto de Lyon, organizado pela “Direction des Ecoles”.

Em 1989 regressei a Portugal, para assumir a gerência do balcão do Fundão do então Banco Fonsecas & Burnay (atual BPI). No entanto, a veia do ensino não se perdera totalmente pois viria a casar com uma professora…

Em resumo, vivi nos arredores de Lille de 1963 a 1966 e de 1971 a 1989 e recordo com saudade esses anos dedicados ao ensino da língua portuguesa em França, mas também com a noção do dever cumprido.

Nunca poderei esquecer o prazer de ouvir dizer a um adulto “já sei ler/ já sei escrever o meu nome” e de ouvir de uma criança “professor, eu já fazi”.

 

José Patrocínio

Castelo Branco, março de 2021

 

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