Opinião: Não somos medo. Somos liberdade


Este ano, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades portuguesas foi muito feliz. Foi feliz pela convergência nos discursos da escritora Lídia Jorge e do Presidente da República, que incidiram muito sobre a consciência do que somos, à luz da identidade que fomos construindo ao longo de séculos.

Somos algo de bom, positivo, luminoso, generoso, aberto, tolerante, plural e democrático. Somos algo que o povo português, orgulhoso da sua história de quase novecentos anos, não vai permitir que seja transformado em negatividade, em trevas, ódio, antagonismo e egoísmo, como pretendem os extremistas.

O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, que este ano se realizou em Lagos e em Macau, foi um belíssimo ato de introspeção, um mergulho na história, onde se percebe claramente que o que hoje somos devemos às múltiplas e diversas influências que tivemos ao longo de séculos, nas várias geografias por onde passámos e nos instalámos.

E os portugueses, um povo do mundo, dos cinco continentes, deixaram-se enriquecer pela curiosidade em terras estranhas, com povos, culturas e religiões. Fomos ao seu encontro, sem medo de sermos permeáveis aos outros. Fomos e somos, como dizia Eduardo Lourenço, “intérpretes de culturas”. Essa é a nossa maior riqueza. A pureza da raça é um mito. Todos os povos resultam de misturas, de confluências e os portugueses são o mais perfeito exemplo disso. Foram as confluências, vividas ao longo de séculos dentro do nosso território e fora dele, que nos forjaram, no mundo e no tempo, como aquilo que hoje somos: humanistas, universalistas, cosmopolitas, tolerantes.

Acredito, por isso, que os portugueses não permitirão que quem ignora a nossa essência, nos arraste para um lugar sem luz nem humanidade, um lugar habitado por extremistas inspirados em ideologias fascistas e neonazis. Vemo-los hoje ganhar força, atentarem contra as liberdades, contra a diferença, contra a cultura e a ciência, legitimados pelo crescimento da extrema-direita, em Portugal corporizada no Chega.

Disse Lídia Jorge: “Consta que, em pleno século XVII, 10 por cento da população portuguesa teria origem africana. Uma população que os portugueses tinham trazido, arrastado até aqui. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante. Do europeu e do africano. Do branco e do negro e de todas as cores humanas”.

Logo de seguida, o Presidente completou e reforçou: “Neste lugar simbólico somos chamados a recordar os 900 anos de história comum, o orgulho naqueles que a fizeram, vindos de todas as partes, gregos, fenícios, romanos germânicos, nórdicos, judeus, mouros, africanos, latino-americanos e orientais. E, desde as raízes, lusitanos, leoneses, borgonheses, gauleses, saxões. Recordar esses e muitos mais que de nós fizeram uma mistura e não há quem possa dizer que é mais puro e mais português que qualquer outro. Tudo isso definiu o que somos: experientes, resistentes, criativos, heróis nos momentos certos, capazes de falar línguas, entender climas e usos de conviver com todos e construir, dia-a-dia, pontes”.

É isto tudo e muito mais que não podemos perder, arrastados pelos obscurantistas, que teimam em fazer da ignorância a sua força. Isto é o que somos como povo e não o que os extremistas com toda a sua violência e falta de humanidade querem que sejamos.

Não somos medo. Somos liberdade.

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Paulo Pisco

Ex-deputado do PS