Opinião: O euro que virou 100 escudos na ilha do Sal: quem ganha com a desordem monetária e quem põe ordem nela?

Euro por euro

O euro, na ilha do Sal, virou moeda corrente! Em qualquer tasca ou hotel, simples quiosque ou na rua, paga-se e cobra-se indistintamente em euros como em escudos. As duas moedas convivem perfeitamente na mesma carteira, sobretudo em Santa Maria.

Mas a cotação do euro foi alterada: vale 100 escudos, e todo o mundo faz tábua rasa do câmbio oficial que é de 110,265 escudos! Esta depreciação informal do euro também acontece nas outras ilhas, mas na ilha mais turística de Cabo Verde já é moeda corrente. Ela foi decidida nos balcões de comércio, com dupla vantagem para a caixa: arrecadar divisas e realizar uma importante mais-valia: feitas as contas, 10 escudos ganhos em cada euro, parece pouco, mas representa um lucro suplementar de 10% – 10 contos em cada mil euros!

A diferença não é, como pretendem alguns, para compensar comissões cobradas pelo banco, acreditar nisso é cair no conto do vigário!

Duvido que os comerciantes, no início, tivessem pensado no troco em euros. Acontece que somos um país não só de turistas mas sobretudo de emigrantes, então o euro foi-se socializando… e se valia 100 escudos no pagamento, tinha que valer 100 escudos no troco!

E vai daí, a moda pegou: o euro a 100 escudos para todos, e pronto! Ninguém sai prejudicado, nem à frente nem atrás do balcão. Mas câmbio oficial, isso já era!

E será que ninguém sai prejudicado mesmo? Então vamos lá ver: pode supor-se que o vendedor seja mais tentado a cobrar em euros do que a dar o troco na mesma moeda, já que o troco não rende no câmbio! E havendo câmbio, escusado dizê-lo, nunca é ao gosto do freguês!

 

Um hotel com dois câmbios!

Ouvi dizer que outras cotações campeiam no Sal, cada qual cotando o euro como lhe da na real gana! Isso não presenciei, mas cheguei a ver pior: dois câmbios consoante a conveniência da casa!

Falo por mim: recentemente, num hotel em Santa Maria que fixa os preços em euros (virou moda no Sal e não é por acaso), faturaram-me a hospedagem à razão de 1 euro = 110,265 escudos. Tudo bem, câmbio oficial, nada a dizer… Mas uma coisa não batia certo, disse-lhes: no restaurante do hotel o euro valia 100 escudos! Ao que me volveram: – «Tem razão, mas isso é no restaurante! Na receção aplica-se o câmbio bancário»!

Dois câmbios num mesmo hotel, para o mesmo euro, dá para entender? Dá! Na receção não há troco a dar, tanto mais que o cliente, via de regra, paga com cartão bancário ou por cheque. E se paga em escudos pelo câmbio do euro, nesse caso o câmbio oficial rende mais que o do restaurante (100 escudos para todos)!

Vamos agora às contas: se um euro entra pela receção a 110,265 escudos e sai a 100 escudos no restaurante (a dar o troco), o diferencial é de 10,265 escudos. Então 2 mil euros rendem 20.550 escudos! Só este ganho suplementar dá para pagar o salário de um empregado!

Se bem captei, o câmbio oficial só é lembrado no interesse de quem fatura, e coitado do freguês, turista ou emigrante o mais das vezes! O seu euro vale (apenas) 100 escudos, mas quando passa para a mão do comerciante, é-lhe retornado a 110,265 escudos – câmbio oficial, se faz favor! Nos dois casos o freguês é prejudicado e o comerciante esfrega as mãos.

 

Lembrando o acordo monetário de 1998

Cadê os bancos? Onde para o Ministério das Finanças para lembrar a quem esqueceu (ou não sabe) que o câmbio permanente do euro resulta de um acordo com instituições financeiras europeias que nos fizeram confiança?

O conto volta atrás: o acordo de cooperação monetária foi celebrado entre Praia e Lisboa no dia 13 de março de 1998. A paridade fixa entre o escudo português e o escudo caboverdeano acabava com o isolamento da nossa moeda face às moedas do Sistema monetário europeu, e abria-nos as portas à futura moeda comum europeia por intermédio do Banco de Portugal. (1)

Com esta indexação ao euro, ficavam afastados os riscos de flutuação face à moeda europeia que, por inerência de cálculo, fixou-se em 110,265 escudos caboverdeanos ainda antes da sua entrada em vigor em 2001.

Mas o acordo de 1998 obrigava a uma necessária disciplina financeira: de certo modo os chamados «critérios de convergência» fixados no tratado de Maastricht (1992) impunham-se a nós, um desafio enorme para um país frágil como o nosso (2); o Governo não podia socorrer-se da desvalorização para corrigir eventuais desequilíbrios decorrentes de uma gestão orçamental laxista.

Se trago à baila o acordo cambial de 1998, é para relembrar a paridade fixa do euro, e dizer o seguinte: se o acordo foi celebrado a pensar no saneamento dos índices macroeconómicos do país, se andámos a arrumar a casa, não foi para cairmos nesta bagunça toda que se vê no Sal – e não só!

Comerciantes e mercadores não devem fazer a lei, e a lei da selva não deve prevalecer num sistema monetário sério. Fica-nos mal aos olhos de quem nos visita, com prejuízo para a nossa imagem nos países europeus onde os turistas (muito bem informados sobre os câmbios) falam por nós.

E não falei aqui do euro que entra pela porta e sai pelo portão, em vendas informais e outros «negócios da China».

 

Notas:

(1) Para dar seguimento ao acordo, uma Unidade de acompanhamento macroeconómica (UAM) passou a reunir-se todos os três meses, alternativamente em Lisboa e na Praia.

(2) Pelo tratado de Maastricht, assinado em 1992, os Estados membros da União Europeia comprometiam-se a respeitar um certo número de critérios, ditos «de convergência», para integrar uma futura União Económica e Monetária (UEM). Critérios de disciplina e contenção no tocante às taxas de juro e de câmbio, da inflação, dos défices públicos e da dívida pública.