Reitor Nuno Aurélio Fatima

Opinião: Quando as criaturas falam…

Se as criaturas vivas e inertes, se o meio-ambiente e todos os elementos falassem a linguagem humana, exigiriam a cada um de nós: «Penitência, penitência!». A palavra de origem latina traduz o grego «metanoia» que se pode traduzir por transformação completa do pensamento. Tal conversão não se limita a uma mudança de mentalidade, mas também implica mudança de comportamento, de atitude, de maneira de ser e de viver.

Para a Quaresma deste ano, o Papa Francisco integrou o respeito pela criação na penitência quaresmal. No entanto, não o faz como um qualquer bem-intencionado ecologista, e muito menos como um radical defensor do meio-ambiente, que põe o bem de qualquer criatura acima do Homem.

Se a vida é progresso e avanço, então «podemos caminhar para a realização da salvação que já recebemos, graças ao mistério pascal de Cristo: “De facto, foi na esperança que fomos salvos” (Rm 8, 24). Este mistério de salvação, já operante em nós durante a vida terrena, é um processo dinâmico que abrange também a história e toda a criação. São Paulo chega a dizer: “Até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8, 19)» (Francisco, Mensagem para a Quaresma, 2019).

Ora, filiação divina significa viver de Deus para Deus, como Jesus com o Pai, no Espírito Santo que os une. Esse mesmo Espírito é-nos concedido no Batismo, para assim vivermos como filhos de Deus, irmãos e discípulos de Cristo e convivermos também como irmãos de todos e respeitadores do mundo tão belo que nos rodeia, a nossa casa e riqueza comum, que devemos salvaguardar.

O mais espantoso na experiência cristã é que esta redenção oferecida aos homens também atinge toda a realidade criada. Deus, que nos criou sem nós, não nos salva sem a nossa cooperação livre e consentida. Mas ao salvar-nos, salva-nos juntamente com o universo.

Por isso, choca pensar que alguém julgue – por ignorância – que Cristo e a Sua Igreja se interessem apenas pela salvação das almas, como se fossemos apenas isso. Pelo contrário, e como recorda o Papa: «A criação – diz São Paulo – deseja de modo intensíssimo que se manifestem os filhos de Deus, isto é, que a vida daqueles que beneficiam da graça do mistério pascal de Jesus se cubra plenamente dos seus frutos, destinados a alcançar o seu completo amadurecimento na redenção do próprio corpo humano. Quando a caridade de Cristo transfigura a vida dos santos [nós] – espírito, alma e corpo -, estes rendem louvor a Deus e, com a oração, a contemplação e a arte, envolvem nisto também as criaturas» (idem, nº 2).

Então, porque não é mais perfeita a ação humana? Porquê a Terra também sofre com ela? Porque «quando não vivemos como filhos de Deus, muitas vezes adotamos comportamentos destruidores do próximo e das outras criaturas – mas também de nós próprios -, considerando, de forma mais ou menos consciente, que podemos usá-los como bem nos apetece» (idem, nº 2).

A primeira força poluidora da nossa vida não são os plásticos, as emissões de carbono ou das partículas finas. O que nos polui e destrói a vida é, antes de mais, o pecado e o mal, que muitos teimam em dizer que não existe ou, então, apenas existe nos outros. Diz ainda o Papa: «a causa de todo o mal é o pecado, que, desde a sua aparição no meio dos homens, interrompeu a comunhão com Deus, com os outros e com a criação à qual nos encontramos ligados (…). Rompendo-se a comunhão com Deus, acabou por falir também a relação harmoniosa dos seres humanos com o meio ambiente, onde estão chamados a viver, a ponto de o jardim se transformar num deserto (cf. Gn 3, 17-18). Trata-se daquele pecado que leva o homem a considerar-se como deus da criação, a sentir-se o seu senhor absoluto e a usá-la, não para o fim querido pelo Criador, mas para o interesse próprio em detrimento das criaturas e dos outros. Quando se abandona a lei de Deus, a lei do amor, acaba por se afirmar a lei do mais forte sobre o mais fraco» (idem, nº 2).

Mas também não serão as viaturas elétricas, o biodiesel e as células de hidrogénio que nos salvarão. A resposta a esta força do pecado que domina o coração humano e o leva ao domínio destruidor dos outros e do meio-ambiente é a santificação. «A criação tem urgente necessidade que se revelem os filhos de Deus, aqueles que se tornaram «nova criação»: “Se alguém está em Cristo, é uma nova criação. O que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas” (2 Cor 5, 17). Com efeito, com a sua manifestação, a própria criação pode também «fazer páscoa»: abrir-se para o novo céu e a nova terra (cf. Ap 21, 1) (…) através do arrependimento, a conversão e o perdão, para podermos viver toda a riqueza da graça do mistério pascal.» (idem, nº 3)

Não podendo aqui transcrever toda a mensagem, que se encontra facilmente na internet, concluo com o apelo final de Francisco: «acolhendo na nossa vida concreta a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, atrairemos também sobre a criação a sua força transformadora.» (idem, nº 3).

Quem diria que vencer com Cristo ressuscitado, nos capacita para em cada dia recriarmos o mundo em pequenos gestos que salvem a nossa casa comum, que é o planeta com os seus recursos naturais, finitos e frágeis. Se reduzirmos a poluição sonora com que entupimos a alma podemos ouvi-lo gritar: «Penitência, penitência!». E o mundo será salvo.