Viajar a salto: “Não pedimos nada a ninguém, seja o que Deus quiser” disse o meu pai

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O João tinha feito 16 anos no mês de janeiro. Os pais tinham-lhe dado a possibilidade de ter feito alguns estudos no ensino secundário o que mais tarde lhe iria facilitar a vida.

O pai já estava a trabalhar em França desde 1967.

– Olha lá João, tu já tens a inchada meia encavada e os teus irmãos estão agora a começar a estudar. Queres vir comigo até França para veres como é aquilo por lá?

A esta pergunta, o João não respondeu logo, porque tinha outros sonhos. Ambicionava alistar-se para a Marinha como voluntário. Mas o pai não via esse sonho da mesma maneira, pois havia já cerca de oito anos que a guerra nas colónias tinha rebentado e o seu jovem filho não se apercebia do risco de vida que por essas terras poderia correr se entrasse na Marinha de guerra.

– João, tu vens comigo, só até ao Natal e depois, se não te agrada aquilo por lá, farás como entenderes.

O pai disse-lhe isto, mas sempre pensando que faria com que o filho mudasse de ideias, depois de ver como a vida era mais risonha e interessante por terras de França.

Depois de várias tentativas, no fim do mês de agosto, estando as férias do pai a acabar, o João acabou por ceder à proposta e planeou então a viagem para França.

– João, eu já tenho o passaporte de turista que tirei no Consulado em Lyon. Por isso já não tenho problemas para viajar, mas o teu caso está mais complicado. Com a tua idade, nem pensar ter o passaporte. Vais ter que ir de “a salto”.

Com a previsão desta viagem, e na companhia do pai, o João sentiu grande excitação e ao mesmo tempo um pouco de medo. O medo do desconhecido também tomou lugar nos seus pensamentos e durante as semanas que os separavam da data da partida, foi grande a confusão em sentimentos e pensamentos contraditórios.

– Então como é isso de ir “a salto”? Clandestino é?

Pergunta o João não muito familiarizado com esta expressão tão popular naqueles tempos.

– Sim é isso. Mas não tenhas medo, pois como tu ainda és menor, a GNR e a Pide não te vão procurar, nem te prender. Já houve quem me desse essa informação. Mas não te aflijas. Dizemos que vamos fazer umas compras a Espanha, se nos procurarem alguma coisa.

– Está bem, mas se eu não passar por qualquer razão, o pai volta para trás também e não me vai lá deixar ficar sozinho na estação?

– Claro que não. Era o que faltava. Tu vais e eu também vou. Caso contrário, volto para trás. Quem é que iria calar a tua mãe. Não te preocupes, que se Deus nos ajudar, irás ver a França.

O João, a mãe e o pai, eram as únicas três pessoas da família a saberem deste projeto que até já tinha data. Partiriam no comboio dos emigrantes que passava em Celorico da Beira pelas três horas da tarde, às sextas-feiras. Discretamente, as despedidas foram feitas aos primos, primas e tios. A mãe Alice acabava agora de preparar as malas e as merendas, debaixo dos olhares “invejosos” dos outros filhos que gostariam também de viajar até França.

O táxi do Alexandre Grande apareceu na entrada da aldeia e perguntou pela casa do Sr. José. Depois das indicações lhe foram dadas por uma senhora que enchia o cântaro de água no fontanário da aldeia, o motorista dirigiu-se a casa do João e dos pais, onde carregou malas e sacos, e rapidamente partiram em direção da estação da CP, porque a hora de passagem do comboio em Celorico estava a chegar. Não podiam perder este comboio pois o próximo seria só dai por oito dias, à mesma hora.

– Então vão até França? E desta vez leva o filho, não é? Fazem bem, que por aqui não se ganha nada, é uma miséria. Daqui amanhã, também eu dou o piro, você vai ver!

Disse o taxista sorrindo.

– Vou lá ver como é aquilo e depois volto. Eu ainda ando a estudar. Vou lá passar umas férias.

– Viva o luxo, João. Não é para todos. Com o pai lá, até se passam bem umas boas férias em França.

Chegaram à estação da CP e depois de porem as malas no cais de embarque, onde se encontravam já outros viajantes, ainda houve tempo para tomarem uma bebida com o taxista que lhes desejou boa viagem e boa sorte.

O barulho ensurdecedor da Automotora a gasóleo que tracionava uma composição de dez carruagens, fez-se ouvir, assim como o seu apito agudo, que fez eco pelo vale onde seculares oliveiras davam a riqueza a esta terra serrana.

As carruagens já iam quase cheias e para entrar foi preciso a ajuda do Chefe da estação que teve que levantar a voz para que as pessoas que estavam no cais ainda pudesse entrar. O João e o pai conseguiram instalar-se no corredor e sentaram-se nas malas. Aqui começava uma viagem de dez ou mais horas que o excesso de passageiros iria transformar num inferno. O destino deste comboio seria Hendaye, onde toda esta “maré” de gente tomaria outros destinos em terras França e alguns seguiam mesmo até à Alemanha.

– Vila Franca das Naves, a cidade da Guarda e depois Vilar Formoso, era por agora o destino, nesta linha férrea chamada da Beira Alta, mas já foram poucos os passageiros que subiram depois deles para esta composição. A carruagem já estava a abarrotar, ou melhor… a deitar fora pelas janelas!

– Escuta João, diz o pai baixinho. Estou a ver que com tanta gente aqui dentro, a policia nem vai entrar no comboio. Vais passar a fronteira que nem dás conta. Vai ser canja.

– Você é que sabe. Está habituado a estas vidas, pois já não é a primeira vez.

– Aposto que, como tu, a passarem clandestinos, sem documentos, deve haver aqui muitos. E agora até já deixam passar mais facilmente. Vamos lá ver, vamos lá ver!

Eram já passadas as cinco horas da tarde quando o apito da Automotora se fez ouvir, entoando pelas serras fronteiriças e aproximando-se a pequena velocidade da estação de Vilar Formoso. O sol ainda aquecia bem neste fim de tarde de verão. Os alto-falantes anunciaram que se faria uma paragem de quinze minutos.

– Atenção senhores passageiros, o comboio internacional vindo de Lisboa com destino a Hendaye, França, terá partida depois das verificações alfandegárias e de passaportes dentro de quinze minutos.

– Olha, com tanta gente, o revisor nem veio ver os bilhetes. Mas seria melhor irmos até lá fora.

– Está bem, vamos lá. Olhe dá-me licença… se faz favor?

E passando por cima de sacos e de malas, pai e filho chegaram até à porta da carruagem. Desceram até ao cais onde já várias pessoas se encontravam para desentorpecer as pernas. Muitos deles tinham olhares desconfiados e de medo. Como o João, certamente não tinham a consciência tranquila. Ele era viajante clandestino.

Após a morte de António Salazar e a entrada para o Governo de Marcelo Caetano, a passagem nas fronteiras tornou-se mais fácil. Começaram a dar a possibilidade de se arranjar um passaporte de turista e assim se poder viajar para o estrangeiro, mas não era fácil arranjar esse documento e muitas vezes era a custo de conhecimentos e relações de amizades, não estar em idade de ir brevemente fazer o serviço militar, já ter passado à disponibilidade militar, ser reservista, e também o cadastro virgem. Eram estes os principais requisitos para se obter o Passaporte de turista.

– João, anda cá, vamos já subir para o comboio antes que comece por ai tudo a empurrar para entrar.

– O que lhe parece, pai? Não se vê ninguém da GNR, nem da Guarda fiscal.

– Não digas isso rapaz, pois às vezes eles andam à paisana, nem dá para os reconheceres. Vai lá entrando que eu fico aqui perto da porta, até que o Chefe da estação dê o sinal de partida.

Ao subir, o João olhou ao longe, do seu lado esquerdo e direito e tentou avistar algum movimento suspeito de pessoas fardadas. Em frente da porta do escritório do Chefe de estação, quatro GNR fardados discutiam e ao mesmo tempo observavam os passantes. João olhou para o pai e fez-lhe sinal com o queixo que lá para a frente havia gente indesejada.

– Sobe lá e senta-te para aí num canto. Eles agora não vão vir. Está descansado.

– Então e você não sobe? Fica aí por baixo?

João estava impaciente.

– Não te aflijas porque se eles começam a controlar, é por aqueles que estão aqui no cais e eu não tenho medo, pois tenho o passaporte. E o tempo de verem toda esta gente, o tempo vai passando e depois já não sobem ao comboio. Não te mostres muito.

Passava agora uma padeira, levando à cabeça um grande cabaz de pão, espanhol e português.

– Quem quer pão fresco, cozido há uma hora? Centeio, carcaças e pão espanhol… ó freguês! Quentinho… é para a viagem senhores!

Ela passou pelo cais, apregoando e fazendo o seu negócio, servindo os clientes no cais, e até pelas janelas das carruagens, deixando um rasto de cheiro a pão quente, que inebriava os sentidos e despertava a fome. João também se apercebeu que havia outras vendedoras, que iam e vinham no cais. Seriam também estas imagens, que ele durante tempos, acarinharia, nas suas lembranças cheias de saudades destas terras portuguesas que hoje deixava.

O apito do Chefe da estação veio libertar o medo que o João tinha na mente. Pois anunciava a partida do comboio, em direção a Espanha e depois a França.

João ainda olhou pela janela e viu que os GNR não tinham mexido da entrada do escritório. A carruagem deu um pequeno solavanco, que anunciava assim a partida eminente. O pai apareceu no corredor com um grande sorriso que queria dizer muita coisa. Era o sucesso da sua passagem na fronteira sem o Passaporte. Passou a salto.

Caía o dia e o sol iluminava com a luz de fogo a planície espanhola que se anunciava. E pelas janelas, aquelas centenas de pessoas que enchiam compartimentos e corredores das carruagens, certamente como o João, pensavam naqueles que deixavam para trás e perguntavam a si próprio quando viriam de novo a Portugal para os abraçarem.

– Pai, até nem foi muito difícil de se passar a fronteira. E agora, em França como é que se passa?

– Ai não há problema. Basta mostrares o Bilhete de identidade e a via estará livre. Amanhã à noite já estaremos em Lyon, se Deus quiser.

– Mas olhe bem que eu já lhe digo. Se a coisa não me agrada, não vou cá estar mais do que o tempo do Natal. Vimos cá e eu não volto mais. Percebeu?

– Está bem rapaz, são três meses daqui até ao Natal e depois tu é que mandas.

Apareceu no ar o cheiro a enchidos e a comida. Toda a carruagem se preparava para a refeição da noite. O balançar da composição, lentamente levou a maior parte dos passageiros para um sono reparador, onde as tensões e os medos, pouco a pouco desapareciam. E o comboio dos emigrantes desaparecia na escuridão da noite espanhola.

João e o pai também sucumbiram ao sono e, sentados nas malas, adormeceram.

Já perto das seis da manhã, as altas montanhas dos Pirenéus anunciavam-se na luz do dia a nascer. Uma chuva miudinha saudava e acolhia os passageiros que vinham da terra do sol.

– Já estamos a chegar rapaz, já estamos no País Basco. Não falta muito para a fronteira.

– Quanto tempo ainda a andar? Uma hora?

– Não, nem tanto.

O comboio vagueou pelas diferentes linhas e agulhagens da estação e acabou finalmente por se imobilizar. Uma voz em francês indicou os cais onde haveria as correspondências para outros destinos. Eram perto das oito horas da manhã. Estava a chover.

José tinha comprado os bilhetes na Wastells em Portugal e ainda estavam completos, pois nem em Portugal nem em Espanha tiveram a visita do revisor ou outro controle onde lhes arrancariam a folha correspondente ao país.

No seu francês “à pedrada”, como ele gostava de dizer, José foi procurar um empregado da SNCF a quem perguntou onde era o cais para o comboio que seguia para Lyon / Clermont-Ferrand, que partiria pelas treze horas.

Com uma no cravo, outra na ferradura… as respostas chegavam dizendo que tinham de passar pelo túnel em frente e era logo do outro lado.

– Lyon, là-bas, là-bas!

– Merci…

– Pas de quoi.

João teve assim o primeiro contacto com as terras francesas, os seus habitantes e a sonoridade da língua. Mesmo se estudou durante cinco anos no colégio e no liceu, o francês parecia estranhamente desconhecido. Para matar o tempo, pediu ao pai para lhe comprar um livro de banda desenhada que ele já conhecia, porque em Portugal existia o mesmo “Mandrake”.

Esta era a versão francesa, o que muito lhe agradou, e foi como um abrir de portas e janelas para a compreensão da língua, sobretudo das expressões mais familiares e populares do dia a dia.

Já passavam três minutos da hora quando partiu o comboio, mas agora estavam num compartimento de oito pessoas, bem à larga, com as malas no sítio previsto. João e o pai sorriram um para o outro, agora contentes com o futuro desfecho da viagem.

– A paragem para nós descermos, rapaz, será em Perrache ou na Part Dieu, logo veremos. Graças a Deus já cá estás em França.

 

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