Lídia Jorge regressa às livrarias francesas com “Estuaire”

Edmundo Galeano perdeu grande parte da mão ao salvar um recém-nascido que a mãe (uma refugiada somali e antiga atleta de alta-competição esmagada pela violência que inferniza o seu país) atirara para uma lixeira. Os três – salvador, mãe e filha – posam para a câmara de um fotojornalista irlandês que deseja levar aquela história a todo o mundo.

É assim que começa o novo livro de Lídia Jorge (Boliqueime, 1946). “Estuário”, que foi lançado em Portugal em 2018, chega agora às livrarias francesas graças à tradução de Marie-Hélène Piwnik poucos meses depois de se ter sagrado vencedor do XXIV Grande Prémio de Literatura DST 2019.

“Estuaire” (Éditions Métaillé) conta-nos então a história de Edmundo Galeano, um dos raros protagonistas masculinos da obra de Lídia Jorge capaz de conduzir o fio narrativo. Edmundo é um jovem de 25 anos que viajou um pouco por todo o mundo e participou numa missão humanitária da ACNUR (UNHCR na sigla inglesa) no campo de refugiados de Dadaab, no Quénia. Um campo que acolhe mais de 200 mil refugiados essencialmente somalis fugidos da fome, da seca, das alterações climáticas e da guerra.

Edmundo, o mais novo de cinco irmãos, regressa então à casa paterna, ali para os lados do Cais do Sodré, em Lisboa, com uma mão mutilada e com um objetivo: escrever um livro que descreva da melhor maneira possível o inferno que vivem os refugiados. Esse livro-projeto manteve-se mesmo quando a sua família da alta-burguesia portuguesa entra em colapso financeiro como consequência da Grande Recessão que abafou a economia e a sociedade portuguesas na viragem da década. Uma família de armadores prestes a perder os navios que lhe resta.

O enredo, que decorre ao longo de 6 meses, talvez algures durante 2010, centra-se assim em duas temáticas essenciais: o objetivo literário de Edmundo e o caos em que mergulha a sua família.

Os desvarios algo adolescentes de Edmundo em relação à literatura – ele é demasiado jovem e impreparado, o que apenas revela que o facto de se ter viajado à volta ao mundo não significa necessariamente que uma pessoa tenha muito mundo dentro de si – terão origem na sua leitura compulsiva da “Ilíada”, o que dá a esta obra da autora algarvia um certo ar homérico no que diz respeito à violência que o Homem é capaz de exercer sobre humanidade. É essa violência que ele deseja expor no livro que pretende intitular “2030”. Um livro que será uma espécie de redenção e de projeção do mundo no futuro. Um mundo não necessariamente melhor.

E é nesse mundo de crise global que a família de Edmundo vive a sua crise interna. Os membros do clã mentem, uns julgam-se superiores aos outros, cada um tenta sobreviver à sua maneira e outros, perante o drama, perdem a vontade de viver: o pai de Edmundo não resiste ao desmoronar da família e enforca-se.

Um livro engenhoso que joga com duas realidades aparentemente muito diferentes, mas que cujas raízes mergulham na mesma crise. Uma crise que é também a dos nossos dias.

 

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