Manuel de Jesus Silveira: um dos Portugueses mais conhecido no Norte da França

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Depois de Maria do Céu, funcionária da Permanência consular portuguesa em Lille, o organizador de viagens de autocarro Manuel de Jesus Silveira – o “Senhor Manel” ou “Senhor Silveira” – deve ser a pessoa mais conhecida e a pessoa que mais pessoas conhece no Norte de França.

Ninguém é perfeito, Manuel Silveira não o será, com certeza, mas somos sinceros contudo ao afirmar que não nos lembramos de alguém que nos tenha dito mal dele.

São pequenas e grandes histórias que este homem que festejou a 4 de julho os seus 83 anos, nos vai contar, com uma memória incrível, como um livro aberto.

Marcamos encontro num destes sábados, na Associação Cultural dos Portugueses de Armentières:

 

Manuel Silveira, conte-nos a sua vinda para França.

Saí da minha freguesia do Teixoso, no concelho da Covilhã, a 14 de abril de 1966. Antes de seguir para França, desloquei-me ao Serviço da Emigração, em Lisboa, vim com «Carta de chamada». No dia 17 de abril cheguei ao meu primeiro paradeiro em França, em Nîmes. Aqui ao Norte de França cheguei em 1969. Vim para o Norte para trabalhar na minha profissão, no têxtil. Fui recrutado em Pérenchies, na Agache, a empresa que chegou a ter 3 mil operários. Chegámos a ser 650 Portugueses.

 

De onde vinham os operários portugueses da Agache?

Havia muita gente da zona da Covilhã. A Covilhã era igualmente uma zona de lanifícios, mas também veio gente que trabalhava na terra, tive três cunhados que vieram para esta fábrica que trabalhavam na lavoura em Portugal.

 

Antes de emigrar, fez a tropa em Portugal?

Não, eu não cheguei a ir à tropa, no meu ano éramos 41 e só 4 é que foram à tropa, no ano a seguir rebentou a guerra em Angola e aí já iam todos os que passavam pela inspeção.

 

Em Portugal chegou a fazer estudos?

Fiz estudos até à quarta classe e ainda fiz dois meses de Admissão para entrar no liceu, os meus pais pagavam na altura 120 escudos por mês. A professora na terra onde hoje tenho a minha casa, na Borralheira, dava aulas às 4 classes primárias, chegou a dizer ao meu pai que era pena se eu não continuasse os estudos e que eu poderia ir longe. Mas por razões de partilhas, o meu pai teve um acidente, a minha mãe ficou muito sobrecarregada com muito trabalho, assim como a minha irmã mais velha, que vai agora fazer 86 anos. A minha mãe e a minha irmã trabalhavam como umas escravas, por esse motivo abandonei a escola para as ajudar. Éramos quatro irmãos, todos os quatro sabemos ler e escrever, a minha irmã mais velha é que sabe menos porque a tiraram da escola para se ocupar dos irmãos mais novos.

 

Desde cedo interessou-se pela vida associativa portuguesa aqui na região…

Fiz parte, cedo, de diversas associações. Fiz parte da Associação portuguesa de Pérenchies a partir de 1979. Cheguei a fazer vir aqui a Pérenchies a equipa de futebol do Teixoso, que na altura jogava na terceira divisão nacional, veio um autocarro com 55 pessoas, foi uma festa como nunca se viu aqui. Fiz parte da associação de Pérenchies a pedido do Presidente da associação aqui de Armentirères. Fui igualmente Presidente dos Portugueses de Lille, eu ocupava-me da Secção de futebol e o Belmiro Ramos da Secção escolar. O Belmiro Ramos era o representante da região no Conselho das Comunidades, uma vez pediu-me para ir representá-lo numa reunião, respondi que caso ele não pudesse ir que eu iria representá-lo, fui 3 vezes a esse tipo de reuniões, eram reuniões de que não gostava muito, gosto pouco de polémicas. Em Lille havia muitas entradas de fundos mas também tínhamos muitas despesas: pagávamos os autocarros das crianças que vinham seguir as aulas de português na associação. A propósito de dinheiros, uma vez fizemos uma festa na rua Lannoy, houve tanta entrada e consumo que as notas não cabiam na gaveta, o espetáculo foi com o Nuno da Silva, contudo quando pagámos tudo ficou-nos simplesmente 430 francos, em conclusão disse para o Manuel Vaz: será que vale a pena incomodarmos tanta gente para este resultado?

 

Quantas equipas de futebol tiveram em Pérenchies?

Em Perenchies chegamos a ter 3 equipas de futebol, eu é que fazia as folhas para as três equipas e seguia-as, no fim de semana estava sempre ocupado, ao sábado só chegava a casa lá para as onze horas da noite, sem ter tido tempo para almoçar.

 

Quanto lhe veio a ideia de organizar viagens?

Eu já organizava viagens em Portugal. Tinha 16 anos quando organizei a primeira viagem de uma excursão de três dias a Lisboa, visitámos Lisboa e fomos ver um jogo de futebol entre o Sporting e o Benfica. Fui ver o Tonito, o patrão de autocarros na Guarda, perguntando pelo preço para irmos a Lisboa e Alvalade ver o jogo e visitar. O Senhor Almeida disse-me “ó rapaz, olha que isto não é dado”. Respondi: “Senhor Almeida, eu sei”. O patrão pediu-me que passasse 50% do preço da viagem 15 dias antes e o resto na véspera da viagem. Quinze dias antes da viagem fui vê-lo e não lhe dei 50%, mas sim a totalidade do aluguer do autocarro. A partir desse momento, para outras viagens, já não era eu que ia vê-lo, era ele que vinha saber de mim. Cheguei ao ponto de conhecer Portugal de Norte a Sul com as viagens que organizei. Só ao Algarve é que não fui de autocarro, só lá fui uma vez de carro com a família, em 1974.

 

E aqui em França, quando começou a organizar viagens?

Quando comecei já aqui havia um que fazia, era o Francisco Bicho. Foi um cunhado do Francisco Bicho que me falou de começarmos a organizar também viagens de autocarro para Portugal. A decisão foi tomada num casamento de uma filha de um chamado Herminio Carlos. Na altura eu também já vendia bilhetes de autocarro para Portugal para uma agência de viagens. As viagens para Portugal comecei a organizá-las em 1972 e acabei com as ditas viagens em 1994, havia de ter terminado mais cedo, as viagens para Portugal tiram-me 10 anos de vida, eram problemas de bagagem, todos queriam que os fosse buscar à porta o que não era possível porque eu tinha que dizer ao patrão dos autocarros qual o percurso exato e os lugares de carregamento por uma questão de seguro.

 

De todas essas viagens a Portugal, algo se passou menos bem?

Só me lembro de ter tido um problema com um autocarro em 1979. Eu vinha de carro e deixei o autocarro entregue a um homem que morava aqui, em Armentières. Ao passarem a fronteira de Portugal em direção à França, a polícia aproximou-se do autocarro dizendo-lhes que vinham muito carregados, ao passar na balança concluíram que traziam 3 mil e tal quilos a mais, o excesso de peso foi descarregado. A dita bagagem acabou por ser enviada pela Sernam para a Gare de Lille, onde tivemos de a ir recuperar. A um momento tive de eliminar as merendeiras, mas havia sempre um ou outro que tentavam trazer, o que provocava por vezes discussões, alguns passageiros só pensavam neles, não pensavam que os outros poderiam ter as mesmas exigências e direitos.

 

Depois começou a organizar viagens para outros locais…

Depois de Portugal, começaram a pedir-me para organizar excursões para Lourdes. Também comecei nos anos 1972-73. Organizei todos os anos pelo menos uma viagem a Lourdes, a não ser nestes dois últimos anos, por causa da pandemia. Fui a Lourdes 52 vezes, está ali um amigo a jogar às cartas com o boné, que foi comigo a Lourdes 33 vezes. Organizei viagens à Bélgica, Holanda, Roma, República Checa, Hungria, Eslováquia, ao Tirol Austríaco, à Polónia, à Baviera, na Alemanha, à Croácia, cheguei a fazer 3 viagens para visitarmos na mesma viagem 4 capitais da Europa. Foi um mundo de aventuras para mim.

 

Uma anedota?

Uma vez estava em Praga e para nos reconhecermos eu tinha uma pequena bandeira de Portugal na mão. Houve uma pessoa que saiu de uma loja e que me diz: “Você é português”, eu respondi: “se você me fala português, também é português”. Tinha um pequeno comércio perto de onde estávamos.

 

Muita gente fala das suas viagens à Madeira…

À Madeira organizei 19 viagens, sobretudo porque me pediam. Sem a minha organização pessoal, muita gente não teria viajado e visitado a Madeira e outras cidades e regiões da Europa. Tenho tantos pedidos que se calhar ainda vou organizar uma viagem à Madeira no próximo ano, por altura da Festa das Flores.

 

Muita gente conhece o Manuel Silveira aqui na região…

O nome do Silveira é conhecido em todo o lado e eu conheço muita gente portuguesa aqui na região, conheço os nomes, as direções e por vezes até os números de telefone de cor. Quando organizava as viagens ia visitar as pessoas para recuperar o dinheiro, nomeadamente para pagar o avião um mês antes da viagem. Em geral levava 53 pessoas à Madeira, cheguei a levar 63 pessoas, tinha que andar com uma carrinha atrás do autocarro porque este só podia levar 53 pessoas.

 

Qual o objetivo dessas viagens?

O meu prazer, ao organizar viagens, era de contentar as pessoas, o pouco que recuperava no preço era para a minha gasolina, impressões e pouco mais. O meu maior prazer e riqueza era de ser sério com as pessoas. Sempre gostei destas coisas. Já em Portugal não tinha um minuto de descanso, depois do trabalho tinha um negócio de fazendas, andava pelas aldeias a vender. Uma vez, quando vinha do Descoberto, de mota, ao chegar ao Castelejo, fui atropelado. Tudo correu sempre bem com as viagens que organizava. Sempre procurei fazer o melhor em todos os aspetos: preço, condições, bons hotéis, pessoas que nos pudessem servir de guias. Em muitas das viagens, eram mais Franceses a irem comigo do que Portugueses.

 

Nunca teve um acidente ou um problema pessoal?

Vem-me à memória dois casos. Tive uma vez um problema na Madeira, uma senhora caiu ao sair do hotel, tinha uma prótese, e ao cair, a prótese saiu do lugar. Deu-se a escolha de saber onde queria ser operada. Escolheu de ser repatriada para França pelo seguro, não teve que pagar um cêntimo, o marido foi igualmente repatriado ao mesmo tempo. Uma outra vez, um senhor que tinha diabetes, comeu uma sopa de cenoura, embora eu tenha desaconselhado. Como a sopa de cenoura tem muito açúcar, acabou por desmaiar, tivemos que o levar ao hospital.

 

Como conseguiu organizar viagens com preços baixos?

As pessoas até perguntam como é que consigo fazer viagens ao preço que faço. Eu tento negociar tudo, e como passei a ser conhecido pela minha seriedade, organização e exigência, pude negociar sempre. A título de exemplo, para Lourdes, daqui até lá são 1.080 km, saímos à quarta e regressámos à segunda de manhã, dormimos três noites no hotel, fizemos nomeadamente uma refeição num restaurante de luxo, tudo incluído, as pessoas pagaram este ano 320 euros.

 

Trabalha sempre com as mesmas agências?

Trabalho com diversas companhias, nomeadamente uma de La Bassée. Numa das últimas viagens fiz um acordo com uma companhia de autocarros, uma outra que fazia mais caro telefonou-me dizendo que baixava os preços, como já tinha dado a minha palavra não voltei atrás, disse-lhes que já era tarde demais.

 

São recordações e recordações que guarda?

Eu guardo tudo, tenho diversos álbuns com fotografias das diferentes viagens, tenho recordações escritas.

 

Como fazia para organizar as viagens?

Passei dias e dias a fazer os programas das viagens a países onde nunca tinha ido. Consultava livros, escrevia para Ofícios de turismo, funcionou tudo sempre às mil maravilhas.

 

E o que mais lamenta?

A minha esposa, que infelizmente, por razões de saúde, pouco me acompanhou nas diversas viagens. Antes de falecer tinha programado uma viagem a 4 capitais, ela devia vir. Ao regressar de uma ida a Portugal sentiu-se mal e disse-me que já não tinha forças, faleceu alguns meses depois. Muitas das viagens que efetuo a Portugal é para a ir visitar ao cemitério.

 

Estamos aqui na Associação portuguesa de Armentières. Vem cá regularmente?

Sim, passo em geral aos sábados da parte da tarde e aos domingos de manhã. Venho ver os amigos, jogar cartas. De vez em quando também passo em Wervicq onde o chamado “farrapeiro” que tem 90 anos ainda se ocupa da associação. Há também aqui perto a associação de Bousbecque.

 

Manuel de Jesus Silveira é um homem respeitoso e respeitado, que pensa mais nos outros do que em si próprio, a exemplo de certas associações de que continua a ajudar, portuguesas e de beneficência.

Manuel de Jesus Silveira é um dos “históricos”, uma memória que daria para escrever um livro sobre emigração portuguesa, com aspetos por vezes pouco abordados.

 

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