Milhões: o Herói transmontano que veio combater em França

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Quando era pequeno, na minha aldeia vivia um senhor, já com idade avançada, que passava os dias sentado nas escadas de casa, com um chapéu na cabeça e uma bengala na mão. A minha avó dizia-me sempre: «respeitinho porque este senhor fez a guerra».

Sempre sofreu dos pulmões, porque foi gazeado durante a Guerra.

Na vila mais próxima, para onde fui estudar, habituei-me a ver o busto do soldado Milhões.

Milhões é a alcunha dada a Aníbal Augusto Milhais. Nasceu na aldeia de Valongo, no concelho de Murça, onde era agricultor, como aliás todos os habitantes da pequena aldeia. Com apenas 22 anos, foi mobilizado no Regimento de Infantaria n°19, em Chaves, para integrar o Corpo Expedicionário Português (CEP) que participou na I Guerra Mundial.

Embarcou no dia 23 de maio de 1917 e veio de barco para França, onde combateu até ao Armistício. No dia 9 de abril de 1918 participou na Batalha de La Lys e foi nos dias seguintes que o seu destino mudou completamente, já que recebeu a mais alta condecoração militar atribuída a um soldado raso: as insígnias de Torre e Espada.

Os habitantes de Murça ouviram muitas versões da própria boca do Herói Milhões, como era conhecido. Por isso, não admira a quem passe por aquela vila transmontana, lhe digam que o Herói Milhões, sozinho, fez face a uma armada alemã! Há quem diga que ficou sozinho na trincheira onde estava e metralhou tanto que retardou a avançada alemã. Outros dizem que ele pegou nas armas dos colegas que morreram e disparava com umas e com outras, para dar a impressão que os soldados portugueses estavam todos nas suas posições. Outros ainda dizem que caiu, que fez de conta que estava morto e depois ficou só e perdido durante alguns dias.

Raramente se ouve duas vezes a mesma versão. Em Murça há apenas duas certezas: que é um herói e que recebeu a mais alta condecoração militar portuguesa. E por isso tem o busto na capital do concelho que o viu nascer.

O jovem Aníbal Augusto Milhais era analfabeto, como aliás uma grande maioria dos soldados mobilizados. Não sabia falar francês, nem sabia onde era a França. Também desconhecia as razões do conflito que trouxeram até à Flandres francesa – a região de Béthune – para onde veio combater.

Como todos os soldados do CEP, o jovem Aníbal deve ter passado as horas da amargura. Os soldados portugueses estavam entre os Franceses e os Britânicos. Mas quando foram enviados para a linha da frente, ficaram ali durante cerca de 9 meses. 9 meses na linha da frente! Normalmente após três semanas nas trincheiras da linha da frente, os soldados eram rendidos para repouso. No caso dos Portugueses, isso não aconteceu.

E não aconteceu por várias razões: os cerca de 50.000 soldados portugueses não chegaram a vir todos para França, por falta de navios ingleses, e em Portugal estava-se em plena Primeira República, com uma grande instabilidade política. Os soldados portugueses em França sentiam-se abandonados.

Até que conseguiram enfim que os Britânicos os substituissem na linha da frente. A retirada para repouso estava prevista para o dia 9 de abril de 1918.

Tudo indica que a Alemanha sabia! E na noite de 8 para 9 de abril atacou as forças portuguesas, naquela que chamou a Operação Georgette. Havia cerca de 5 vezes mais soldados alemães do que portugueses.

Para nós, ficou conhecida como a Batalha de La Lys. E lá estava o jovem Aníbal, ali na zona de Neuve Chapelle, não muito longe de La Couture, onde está o Monumento ao soldado português e não muito longe de Richebourg, onde está o Cemitério Militar Português. Foi ali que combateu.

Não se sabe ao certo o que fez o jovem Aníbal Augusto Milhais no primeiro dia da grande ofensiva alemã contra a 2ª Divisão do CEP, como parte da “Operação Georgette”, lançada pelo 6º Exército alemão do General Ludendorff.

O jovem soldado Aníbal teria salvo um oficial britânico!

O que é certo é que recebeu a condecoração de Torre e Espada no próprio campo de batalha, das mãos do jovem General Gomes da Costa, que mais tarde foi Presidente da República. A esta distinção seguir-se-ia a Cruz de Guerra, a Cruz de Leopoldo da Bélgica e muitas outras.

O seu Comandante, o Major João Ferreira do Amaral, acabou por ser responsável pela mudança de nome. Quando o abraçou, disse-lhe: “Chamas-te Milhais, mas vales milhões!”. E ficou “Milhões”.

Consta também que queriam dar-lhe, depois da Guerra, a metralhadora Lewis com a qual combateu e ele teria respondido: “Essa Luísa já eu aturei que chegue” e recusou.

Em sua honra, a aldeia onde nasceu e onde sempre morou, passou a chamar-se Valongo de Milhais. Só que ele passou a ser… Milhões!

Aliás, metade dos filhos chamaram-se Milhais e a outra metade passou a ser Milhões, com a cumplicidade dos oficiais de registo civil que só o conheciam como Milhões.

Regressou a Portugal no fim da Guerra. Podia ter deixado a vida no Cemitério Militar Português. Podia ter ficado hospitalizado no Hospital português de Hendaye. Podia até ter casado em França, onde havia muito mais mulheres do que homens e onde havia muitos campos para cultivar.

Aníbal Augusto Milhais regressou à aldeia.

Teve muitas homenagens, contou milhares de vezes a sua história – que foi certamente deformando ao longo dos anos.

Por exemplo, quando inauguraram a eletrificação do estádio Jamor, lá estava o Herói Milhões para carregar no botão…

Mas a Administração esqueceu-se de lhe pagar uma pensão de Guerra. Recebia tão pouco que ficava-lhe mais caro perder a “jeira” para ir a Vila Real receber a mesada.

Em 1928, Aníbal Augusto Milhais teve de emigrar para o Brasil para poder sustentar os filhos. Os Emigrantes portugueses no Brasil não gostaram. Disseram que um Herói não deve ter de emigrar. Fizeram uma subscrição a seu favor para que pudesse viver dignamente no seu país e enviaram-no para Portugal.

Um dia, “uns senhores de Lisboa” tomaram conhecimento que o conhecido Milhões, não recebia a pensão a que tinha direito. Fizeram o necessário e lá passou a receber a soma. Já tinha criado os filhos, já tinha mantido a casa da família.

Faleceu em 1970. Teve honras militares e fizeram-lhe um busto em Murça.

Nunca mais voltou a França.

O neto, Eduardo, o único que já nasceu depois da morte do Herói, participou nas cerimónias do Centenário da Batalha de La Lys e deve ter ficado emocionado quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, discursando ao lado do Presidente Emmanuel Macron, evocou o Soldado Milhões. Cem anos depois da Batalha de La Lys.

 

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