Nuno Gomes Garcia conversa com Ana Cristina Silva: “O passado fascista português tem sido branqueado”

Ana Cristina Silva é uma das escritoras portuguesas que mais publica. Também professora universitária no Instituto de Psicologia, publicou em abril “As longas noites de Caxias”, o seu décimo terceiro romance. Um livro que, como o título indica, nos faz recuar aos anos de chumbo da sociedade portuguesa. As décadas de 60 e 70 portuguesas ficaram marcadas pela Guerra Colonial, a emigração maciça, a opressão política e a pobreza endémica. Apesar de uma boa parte da sociedade estar anestesiada, a resistência tinha lugar. E é essa resistência, e das suas consequências, que Ana Cristina Silva trata neste romance através da história de duas mulheres a que tudo opunha.

Se “Leninha”, uma agente da PIDE, chefe de brigada, se dedicava a aperfeiçoar a tortura que praticava, já Laura, uma alentejana, jovem universitária, sofria na pele essa tortura por querer libertar o país do jugo fascista que o ia condenando à pobreza e à ignorância.

Uma mistura de ficção e de verdade histórica, com avanços e recuos no tempo, que ilustra de maneira bem realista as atrocidades cometidas, mas que também mostra aquela luz de esperança que nunca desapareceu do retrovisor de quem arriscava a própria vida num combate que o oponha a um sistema poderoso e desumano.

Nestes nossos tempos de regresso ao passado, onde a xenofobia e as pulsões autoritárias parecem ganhar terreno, “As longas noites de Caxias” tem o condão de não nos deixar esquecer o essencial: a Liberdade e a Democracia.

 

Cristina, esta “Leninha” é o retrato da Pide Madalena Oliveira. E o que achei mais cativante nesta tua personagem não foi tanto o que ela fez na vida adulta, mas sim a infância que lhe recriaste. Por exemplo, quando ela teve de optar entre a mãe-vítima e o pai-agressor, optou por este último. Isso é tão retorcido que se torna fascinante. Conta-nos quem foi esta personagem.

Essa parte é ficção, obviamente. Eu apesar de tratar a personagem por Leninha, há lá uma parte em que se percebe que estou a falar de Madalena Oliveira. Eu não tive acesso à infância, mas o que eu sei é que a maior parte dos sádicos, e ela era uma sádica, sofre de uma ligeira predisposição genética para a psicopatia e também muitas vezes uma infância problemática, durante a qual tem lugar aquilo a que os psicólogos chamam a identificação com o agressor. Ou seja: eu quero ter o poder que o agressor tem. E, portanto, neste caso concreto, e acho que isso era verdade, o pai batia na mãe e ela queria ser alguém como ele. Na arquitetura daquele tipo de personalidade, com aquelas características, a infância é importante.

 

Já a outra personagem, a Laura Branco, que aguentou o espancamento, a tortura do sono, o simulacro de afogamento, é inspirada numa presa política que entrevistaste várias vezes e a quem, e muito bem, vais mantendo anónima. Como é que foram essas conversas?

Desse ponto de vista, foi um livro difícil de escrever porque eu tinha de respeitar muito a minha personagem. Aquilo que eu gosto mais de fazer é pegar em personagens reais e misturar com a realidade, mas nunca o fiz com uma personagem que eu conhecesse pessoalmente. E, neste caso concreto, eu queria que fossem personagens reais porque o passado fascista português tem sido branqueado. Mesmo em relação à PIDE. Ao fim de quarenta anos, já temos os testemunhos dos presos políticos, mas curiosamente, e eu acho isso extraordinário, este meu romance é o primeiro romance centrado exclusivamente na tortura levada a cabo pela PIDE.

 

Sim, ter-se esperado quarenta anos é estranhíssimo.

Estranhíssimo, não é? Eu conheço um conto do João de Melo e conheço um conto do Mário de Carvalho, que esteve preso. É como se nós, nós povo, sempre tão horrorizados com os sofrimentos dos outros povos, muitas vezes, claro, como Auschwitz, em escalas incomparáveis, não nos quiséssemos debruçar sobre os nossos próprios horrores.

 

Cristina, eu às vezes leio e ouço historiadores e especialistas, nessa tal campanha de branqueamento que referes, a opinarem que o regime salazarista não era nada fascista. Dizem que o Estado Novo era um regime autoritário-conservador e não um regime revolucionário-fascista. Como se, afinal, o 28 de maio de 1926 tivesse sido um passeio e não uma revolução de extrema-direita. Ora, como tenho este defeito de já não ser criança para acreditar em historietas, olho, por exemplo, para as imagens dos desfiles da Legião portuguesa, ali todos contentes de braço estendido em orgulhosa saudação romana, e pergunto-me: quais são os objetivos desta gente que anda para aí a opinar e resolve negar todas estas evidências? Como é que tu encaras este movimento branqueador do fascismo português?

Eu acho que tem que ver com os donos do poder. Estou a falar do poder económico, das grandes famílias. Só posso explicar dessa maneira. Pouco depois da Revolução, tudo aquilo que foi nacionalizado foi reprivatizado e, portanto, os donos disto tudo de antes do 25 de Abril são os mesmos que são os donos disto tudo hoje, agora. Eu acho estranhíssimo. Eu li, há uns dois ou três anos, no “Correio da Manhã”, uma entrevista a um PIDE, do qual eu agora não me lembro o nome, mas um homem com um alto cargo, e ele dizia nas calmas “não, não havia tortura, apenas algumas coisas mínimas para pressionar os presos”. E ele diz isto e não há um contraditório! É por isso que estas memórias, memórias de pessoas como a Laura, têm de ser recuperadas. Hoje, os miúdos quase não conhecem a História e têm uma vaga ideia sobre o que foi o fascismo. A xenofobia, estes movimentos ultradireitistas, estas coisas que há quinze ou vinte anos ninguém se atreveria a dizer… estes líderes que surgem atualmente têm muito que ver com a perda da memória. As pessoas que tinham memória do fascismo, da segunda guerra mundial estão a morrer. E essa memória não tem sido suficientemente passada. Na escola, o fascismo português é dado assim en passant.

 

Sabes, Cristina, eu às vezes falo com escritores que têm pavor que os considerem panfletários ou que alguém ache que eles estão a tomar partido seja no que for. Eles querem ser neutrais, não querem arranjar inimizades. Quando li o teu livro, considerei-o logo essencial e depois li uma entrevista tua em que dizes “eu quero que este livro desperte consciências”.

Exatamente. Eu fi-lo dessa maneira. Por exemplo, eu tive mais liberdade criativa com a Pide, ela já morreu, em 2003, do que com a Laura que é uma pessoa viva que eu conheço. Se eu inventasse, poderia ser discutível se era verosímil ou não. Assim, eu digo claramente: foram pessoas, é baseado em factos reais. Existem claro factos ficcionados. Por exemplo, a pessoa que me inspirou a Laura não teve um julgamento, mas eu precisava de um confronto entre as duas. A descrição de tortura da Laura é tal qual, ipsis verbis, como aconteceu. O livro não é panfletário, mas eu tomo partido. Eu não percebo por que razão não hei de tomar um partido. Enquanto autora, entre o torturador e a vítima, eu tomo o partido da vítima. Ontem, ouvi o Nani Moretti, o realizador italiano, a dizer exatamente o que acabei de dizer. Eu escrevo com intenções políticas. Quando eu escrevo, eu quero despertar consciências. A Literatura e a narrativa conseguem passar factos através do registo emocional. Nesse sentido, a Literatura é mais eficaz do que um livro de História.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado

Quarta-feira, 25 de setembro, 9h30

Domingo, 29 de setembro, 14h25

 

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