Nuno Gomes Garcia conversa com Domingos Lobo: «A perenidade da Guerra mantém-se em nós»

“Os dias desarmados” junta poemas escritos por Domingos Lobo, alguns separados por 50 anos. Uns falam da Guerra Colonial e da Revolução, outros das vivências mais recentes do poeta, transformando este livro em uma viagem poética pela História mais recente do Portugal contemporâneo.

Nascido na Beira Alta (porque a mãe queria que ele nascesse na aldeia para se tornar numa boa pessoa), o Domingos, além de poeta e boa pessoa, é igualmente romancista – autor de “Os navios negreiros não sobem o Cuando”, um romance que, ainda na minha adolescência, me ensinou o absurdo da Guerra Colonial – mas também é contista, crítico literário, dramaturgo, encenador, ensaísta e programador cultural.

Nos anos 60, o Domingos Lobo frustrou a família ao não seguir os estudos de Engenharia e, para piorar a situação, optou por estudar teatro no Conservatório. Sem surpresa, foi chamado para a guerra. Apaixonou-se por Angola e, terminada a tropa, ficou por lá a fazer teatro e jornalismo. Regressou a Portugal e à rádio, participando no grupo “Parodiantes de Lisboa”. Desde então nunca parou de escrever e tem hoje cerca de 20 livros publicados.

 

Domingos, este título, “Os dias desarmados”, acaba por enganar o leitor. Os poemas que o compõem, na verdade, são pouco pacíficos. Falam das trevas fascistas, da guerra… Há uma passagem que me impressionou por conter nela o que julgo ser o trauma que atravessa a sua geração. Em 1969, o Domingos escreveu isto: “Luanda ainda a doer-me nos ossos/ e milhares de mortos alojados na garganta”. Sente que a guerra nunca o abandonou?

Eu penso que quem passou pela guerra, neste caso os escritores da minha geração que estiveram na guerra e que escreveram sobre ela, sentem isso. É permanente. Ainda há pouco, em conversa com o João de Melo, nós falávamos exatamente disso. Psicologicamente, a perenidade da guerra mantém-se em nós. Existe uma série de questões: éramos muito novos, tínhamos 20 anos, e fomos para uma realidade que desconhecíamos. Desconhecíamos a violência, desconhecíamos a segregação racial, desconhecíamos o colonialismo tal qual ele era vivido em África. Isso tocou-nos profundamente e ficou-nos para a vida toda.

 

E o romance “Os navios negreiros não sobem o Cuando” é um reflexo dessa experiência. Além disso é considerado um dos grandes livros sobre a Guerra Colonial. A escrita desse livro foi a sua catarse?

Foi, foi. Eu já tinha publicado uma série de textos no “Diário Popular”, por exemplo, naquela página “Um conto por dia”, embora com uma linguagem muito cifrada para conseguir passar as malhas da Censura da altura. E publiquei também no “ABC – Diário de Angola”, onde trabalhei uns tempos. Foi a partir destes textos e de uma memória que se foi criando, adensando ao longo dos meses, que eu escrevi “Os navios negreiros não sobem o Cuando”. E enfim libertei-me dessa carga. Fiquei muito mais livre de todo esse universo, de toda essa dor funda nos ossos, depois de o ter publicado.

 

Foi um fardo que lhe saiu dos ombros?

Foi uma escrita catártica que acabou por me libertar. Depois, mais tarde, em 2013, penso eu, publiquei um livro de contos, “O Largo da Mutamba”, que reflete exatamente a libertação desse peso que a guerra exercia sobre o meu imaginário. Falando de quê? Falando da minha vivência no “ABC – Diário de Angola”, do início da Guerra Civil e da partida de grande parte dos Portugueses de Angola, mas também de Moçambique, da Guiné… O abandono, o regresso das caravelas, de que eu falo no “Largo da Mutamba” que é, se quisermos, o capítulo final de “Os navios negreiros não sobem o Cuando”.

 

Além da Guerra, a Revolução, o 25 de Abril, está muito presente em “Os dias desarmados”. O Domingos, em 1974, escreveu isto: “nascemos de ti País sem nevoeiro/ subitamente abrimos a porta estávamos em casa/ Abril estava inteiro nos teus olhos”. Eu não vivi a Revolução e muito menos o Fascismo. O meu conhecimento desse período é sempre indireto. Por isso lhe pergunto: sendo certo que Portugal está muito diferente do que era há 45 anos, existem certos atavismos que nunca mudarão. Concorda?

Concordo perfeitamente. Há coisas de que não nos libertámos ainda. A sociedade portuguesa ainda sente o peso desses tempos. Eu escrevi um romance sobre isso, sobre os sinais que ainda permanecem do Salazarismo, do Fascismo, sobretudo alguns comportamentos nas sociedades rurais. Essa ideologia, embora esparsa, ainda permanece. Tem a ver com o medo, com o não arriscarmos, com o termos medo do Outro, de nos fecharmos sobre nós próprios, o nos limitarmos às pequenas coisas, o não termos grandes ambições… tudo isso faz parte ainda desse passado.

 

E essa mentalidade atravessa todas as gerações? As gerações mais novas ainda sofrem desses atavismos?

Eu acho que não. Os mais jovens já estão libertos disso e a prova é que pegam na trouxa e vão sem medo à aventura por esse mundo fora. Não quer dizer que os da minha geração também não fossem.

 

Vocês também iam, os motivos é que eram diferentes.

Claro, em circunstâncias muito piores. Eram questões extremas. Fome extrema, uma necessidade extrema de sobrevivência. Raramente era por motivos ideológicos, era quase sempre por motivos económicos. Agora não. É também por uma necessidade de conhecer o que se passa lá fora. Conhecer outras realidades, outros mundos. Não tanto, embora isso também esteja implícito, por questões de ordem económica.

 

Mudemos um pouco de assunto. Eu sei que o Domingos é um consumidor insaciável de cinema e nota-se nos seus romances um certo ar cinematográfico…

Eu fiz crítica de Cinema em Angola e aqui, em Portugal, no “Diário de Notícias”…

 

E acha então que o cinema e o teatro são instrumentos úteis para quem escreve romances?

Acho que sim, absolutamente. Embora o cinema, sobretudo aquele que se faz nos EUA, que é muito mau agora, raramente surge uma obra que valha a pena ver. Também perdemos os grandes autores, que eram as minhas referências: o Fellini, o Truffaut… mesmo as do cinema americano: o Kazan, o Ford… Perdemos esses grandes criadores e a nova vaga de autores não conseguiu substituí-los. Não existe a capacidade de pegar no material fílmico e criar uma ficção que fale dos problemas contemporâneos. A não ser algum cinema europeu, e nós fazemo-lo em Portugal com alguns autores. Mas o cinema é essencial para um escritor. Aliás quando me fala nisso, eu penso no seu último romance, “O Homem Domesticado”. Se lhe pegassem daria um grande filme.

 

“O Homem Domesticado”? Eu também acho que sim, mas ninguém lhe pega para fazer um filme (risos). Bem, Domingos, é impossível não fazer esta pergunta a um crítico literário. Como vê a geração de escritores portugueses que nasceu no pós-25 de Abril? A literatura portuguesa está bem entregue?

Eu penso que sim, que está muito bem entregue. Eu não vou dizer nomes, mas gosto muito da nova literatura, e também da poesia, que os novos autores estão a fazer. Eu julgo que a literatura portuguesa vai pelo bom caminho. O problema da literatura portuguesa não reside nos autores, reside sobretudo, por um lado, na forma como encaramos o livro e, por outro, na concentração, que julgo perniciosa, em dois grandes grupos editoriais, em que de repente não há diferenças. Não temos o pequeno editor a arriscar porque o mercado é escasso, pois cada vez se lê menos. O grande problema da literatura portuguesa reside exatamente aí: no facto de a difusão do livro estar concentrada em duas grandes editoras, no facto de não termos editores independentes que arrisquem no novo e no diferente, no facto de o mercado ser escasso e no facto de não haver uma política de criar novos leitores, de divulgar o livro, de o levar às escolas, de promover campanhas para a leitura. E nesse sentido, o Governo e o Ministério da Cultura têm um longo caminho a percorrer. Esses, sim, são os grandes problemas da literatura portuguesa.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Alexandre Staut autor de “Paris-Brest”

Quarta-feira, 23 de janeiro, 9h30

Domingo, 27 de janeiro, 14h25