Nuno Gomes Garcia conversa com Isabel Mateus: “A emigração a salto foi muito dolorosa”

Isabel Mateus lançou em março deste ano a quarta novela da coleção “Dos Bichos”. Intitulada “Santiago, o lince da Herdade das Romeiras”, esta obra é uma das recomendações do Plano Nacional de Leitura para o 3º ciclo do ensino básico.

A viver no Reino Unido, em Stoke-on-Trent, a Isabel nasceu em Torre de Moncorvo e, em Portugal, foi professora do ensino secundário. Doutorou-se em Literatura Portuguesa na Universidade de Birmingham e dedica-se atualmente à escrita.

Santiago, o protagonista desta novela, é o primeiro lince-ibérico a nascer na natureza e em liberdade na Herdade das Romeiras, no Alentejo.

Lembremo-nos que esta espécie endémica chegou a estar ausente do território português ao longo de várias décadas, até à sua reintrodução no meio natural. Um processo de conservação que muitos consideram o mais bem-sucedido do mundo.

A Isabel narra a vida de Santiago, que deambula por terras portuguesas e espanholas, contribuindo com a sua genética para diminuir o perigo de extinção que ainda paira sobre a sua espécie.

Uma obra que serve para incutir nos mais jovens a necessidade de preservar a natureza e o planeta, levando-os a compreender que os recursos limitados da Terra devem ser partilhados com todas as espécies que a habitam.

 

Isabel, é impossível ler as tuas obras e não pensar em Miguel Torga. Aliás, o teu primeiro livro, “A viagem de Miguel Torga”, até foi publicado pela extinta Gráfica de Coimbra, a editora onde ele publicou durante toda a vida. O que representa para ti Miguel Torga?

Ainda bem que falas nisso. Para mim, desde o final do ensino secundário que Miguel Torga é um dos grandes escritores portugueses do século XX. Com certeza que este autor está sempre presente no meu trabalho. Eu comecei por fazer o doutoramento sobre Miguel Torga, do qual resultou “A viagem de Miguel Torga”, e, a partir daí, comecei a dedicar-me à ficção, o que significa que o meu primeiro livro de ficção publicado, “Outros Contos da Montanha”, tem tudo a ver com Miguel Torga, pois ele publicou os “Contos da Montanha” e os “Novos Contos da Montanha”. Em relação ao “Santiago”, que é o livro que está aqui em destaque, pertence a uma coleção cujo título, “Dos Bichos”, tem tudo a ver com Torga.

 

Falas do “Bichos”, o livro de contos do Torga.

Sim, uma obra belíssima publicada em 1940, e que também pertence ao Plano Nacional de Leitura. E claro que publicar na mesma gráfica de Miguel Torga tem um significado imenso e que este livro tenha entrado para o Plano Nacional de Leitura também significa imenso para mim. Portanto, poderia pensar que há uma certa continuidade do “Bichos” e espero bem que sim, se conseguir estar um pouco à altura do legado do Miguel Torga.

 

Fala-nos um pouco das outras três novelas da coleção “Dos Bichos” que fazem companhia ao “Santiago”.

Esta coleção não começou em 2018 agora com o “Santiago”. Começou em 2013 com o “Farrusco, um cão de gado transmontano”. Sempre me fascinou a história deste cão que sempre fez parte da vida rural transmontana e que, por ali na década de 60/70, devido ao êxodo e à emigração, quase se extinguiu. Hoje, existe um clube, o cão é considerado uma raça e está bastante divulgado.

 

A novela seguinte trata de um burro.

Sim, o “Sultão, o burreco que veio de Miranda”, que saiu em 2015, e, neste caso, é também uma espécie, o burro mirandês, que está ameaçada de extinção.

 

Os burros mirandeses são aqueles burros muito peludos.

Peludos, orelhudos, de olhos muito grandes com uma auréola branca à volta. E com certeza que estas obras surgiram, e estando a falar do “Sultão”, com parcerias. Neste caso foi com a AEPGA, a Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino. Há da minha parte uma preocupação muito grande para que haja uma revisão científica, porque estas novelas pretendem, através da literatura, veicular o conhecimento da natureza de forma mais original, talvez mais apelativa. Nesse sentido, surgiu em seguida, em 2016, o “Signatus, o Lobo do Fojo de Guende”. Neste caso, não estou apenas preocupada com uma espécie autóctone portuguesa, mas sim com uma raça ibérica. Guende situa-se na Galiza, em Ourense. O importante é que preservemos as nossas espécies, as espécies ibéricas, visto que a nossa geografia, a nossa cultura, sobretudo com a Galiza, mas não só, torna muito importante que haja estas parcerias, até porque os animais se dispersam de um país para o outro.

 

Isabel, vamos falar um pouco do teu percurso. Podemos dizer que tu emigraste duas vezes. Primeiro, vieste com os teus pais para França e, depois, já adulta, foste para o Reino Unido com o teu marido e o teu filho. Aliás, essas duas experiências refletem-se em duas obras tuas – “A Terra do Chiculate” (traduzida para francês como “Maria, Manuel et les autres”) e “A Terra da Rainha”. Calculo que tenhas vivido estas duas experiências de maneiras muito diferentes. Como foi?

Nuno, deixa-me só fazer uma pequena correção. Eu não emigrei para França com os meus pais. Eu sou filha de emigrantes, os meus pais emigraram a salto e a minha “emigração” foi sentida através de Portugal.

 

Ou seja, os teus pais vieram para França e tu ficaste em Portugal.

Exatamente. Eu fui uma daquelas crianças que ficou em Portugal. Aliás, a primeira parte da “Terra do Chiculate” é isso mesmo.

 

É então ainda mais dramático.

Sim, é outra maneira de vermos a emigração. Mas, sim, tens toda a razão, a verdadeira emigração para mim foi a emigração para França, foi essa a que eu senti. Quando eu digo a verdadeira emigração, refiro-me a uma emigração mais tradicional, em que havia mais dificuldade, em que as pessoas, estando separadas ou não, enfrentavam muitas mais dificuldades. Não estou a dizer que quem vem para o Reino Unido agora não tenha problemas parecidos, mas, quer dizer, no meu caso concreto, a emigração a salto para França foi muito dolorosa para muitas pessoas. A minha experiência de emigração para o Reino Unido foi muito diferente. Claro que no Reino Unido também existe a emigração tradicional. Ainda há a barreira linguística, que torna mais difícil a inclusão social. Em “A Terra da Rainha” temos a nova vaga de emigração, que será uma emigração mais qualificada, digamos assim, de diplomados, enfermeiros, dentistas, médicos.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Clara Macedo Cabral

Quarta-feira, 03 de setembro, 8h30

Domingo, 07 de setembro, 14h25