Nuno Gomes Garcia conversa com Luísa Semedo: “Existe a noção de que o corpo negro é um corpo que pode sofrer mais”

Luísa Semedo, depois de ter vencido, em 2017, o Prémio Literário e de Ilustração Eça de Queiroz com o conto “Céu de Carvão, Mar de Aço”, acaba de lançar em Portugal o seu primeiro romance, “O Canto da Moreia”.

Num contexto de ressaca pós-colonial e pós-imperial de um Portugal acabado de sair do 25 de Abril, “O Canto da Moreia” gira em torno de Eugénio, um órfão cabo-verdiano que, após uma longa travessia de barco, chega a Lisboa pela mão de um padre com o objetivo de aprender aquilo a que chama o “Conhecimento Universal”.

Prisioneiro da sua própria húbris, uma arrogância e autoconfiança excessivas, Eugénio encetará ao longo do romance uma verdadeira espiral decadente que, tal qual uma avalanche, o conduzirá ao alcoolismo desenfreado – a tal Moreia de que fala o título da obra – e à vida de sem-abrigo, deixando pelo caminho uma família devastada pela violência e pela pobreza.

Um livro intrépido escrito por uma ativista irrequieta e proativa que vê na “arte comprometida” uma forma de combater a invisibilidade a que é sujeita a minoria afrodescendente em Portugal, empurrada para bairros insalubres e periféricos. Uma invisibilidade potenciada pelo racismo – que a autora considera “estrutural” por ser perpetuado constante e reiteradamente pelas práticas institucionais e culturais do país – e pela pobreza que, embora partilhada por uma boa percentagem da população “branca”, se torna um peso maior para as populações “negras”, visto ser, tal como provam os estudos sociais, muito mais difícil, em Portugal e na Europa, a ascensão social de um “negro” do que a de um “branco”.

 

Luísa, vamos começar pelo fim. O Eugénio, após tantas peripécias, chega a atingir o “Conhecimento Universal”?

Não, ele não chega a atingir o tal “Conhecimento Universal” porque tudo isso é, no fundo, uma utopia de juventude. Essa arrogância tem um pouco que ver com a juventude e com aquilo que ele achava ser capaz de fazer. Quando estava em Cabo Verde, ele era um privilegiado no seu meio, teve acesso à escola, a livros. E teve a sorte de ser alguém com uma paixão pelo Conhecimento e com algumas capacidades intelectuais. Ele estava à-vontade e sabia que poderia fazer tudo, sentia que era senhor do mundo. Depois quando perde os pais e chega a Portugal depara-se com todos aqueles problemas de integração e de solidão próprios a este tipo de emigração.

 

Eu sei que um dos teus livros de referência é o “Devaneios de um caminhante solitário” do Jean-Jacques Rousseau. E tu refere-lo no teu romance algumas vezes. Um dos personagens até oferece esse livro do Rousseau ao Eugénio.

Sim, é o Canhão que o oferece.

 

Sim, isso mesmo. Pergunto-te se existem pontos de contacto entre um e outro livro?

Claro, existem. Bem, quando eu acabei o doutoramento, a minha tese foi sobre a Empatia, interessei-me muito rapidamente pela questão da Morte e da Solidão. O “Devaneios de um caminhante solitário” é o último livro do Rousseau, ele nem sabia se seria publicado ou não. Aliás, foi publicado postumamente e nem sequer está acabado. É de facto um livro que me tocou profundamente e é ainda hoje o meu livro preferido porque é um livro de verdade. É um livro em que uma pessoa chega ao fim da vida e faz uma avaliação da própria existência. Quais foram os momentos maus, os momentos bons, o que é que correu bem, o que é que correu mal. É uma verdadeira confissão, ainda mais do que o livro “Confissões” que ele escreveu anos antes. Isto toca-me muito e tentei também passar isto para o “Canto da Moreia”. No fundo, é uma reflexão do Eugénio sobre o que foi e o que poderia ter sido a sua vida.

 

A estrutura formal do livro é muito original: a cada capítulo corresponde um espaço diferente. Qual é o teu objetivo?

É engraçado. Falaste do “Devaneios de um caminhante solitário”, que está dividido em dez partes, dez caminhadas, e foi um acaso o facto de o meu livro ter também dez capítulos. E “O Canto da Moreia” também tem esta ideia de caminhada. De caminhar num sítio, quer seja o quarto, a fábrica, a igreja, os sítios moldam aquilo o que se passa lá dentro e há muita coisa que se pode passar. Tudo isto parte de uma ideia inicial minha que era a de fazer uma curta-metragem, ou uma longa-metragem, que se passasse só na mesa. Nós só veríamos uma família sentada na mesa e a partir daí tu saberias tudo sobre ela. E então acabei por passar essa estrutura para o livro e achei interessante fazer isso.

 

Vamos falar do título. Eu já referi rapidamente que a Moreia nos transporta para a problemática do alcoolismo. Mas porquê moreia?

Isso é uma pequena brincadeira com o canto da sereia, um canto que te leva à perdição e, no fundo, é isso também, o canto da moreia leva o Eugénio à perdição. A moreia é um peixe conhecido, que se come em Cabo Verde. E a moreia é também para mim uma memória antiga, faz parte das minhas primeiras memórias. O meu pai, que é cabo-verdiano, tinha trazido uma moreia para casa. Eu e o meu irmão ficámos sozinhos com o peixe, que acho que ainda estava vivo. Eu lembro-me do nosso pânico de termos ali uma moreia em casa, um animal que é hediondo e que mete medo…

 

Estás a ser preconceituosa em relação à moreia. É um peixe igual aos outros e que não merece ser discriminado (risos).

Não (risos), há um fascínio e ao mesmo tempo algo que te faz medo. Foi um daqueles acasos, daquelas ideias que de repente aparecem.

 

Vamos falar de um tema que é importante, não só para ti, mas também para mim e, creio, para quem nos escuta e lê. A questão do racismo em Portugal. Não é um tema meramente português, como é óbvio, mas como somos os dois portugueses… No teu livro, focas essa temática, mas mais nos anos 70 e 80. Passaram entretanto trinta, quarenta anos. Na tua opinião, mudou alguma coisa ou continua tudo igual?

Eu acho que mudou e mudou muito rapidamente. Já escrevi esse livro há algum tempo, se calhar se o escrevesse hoje, escrevê-lo-ia de maneira diferente. O que mudou, sem dúvida, foi a politização das novas gerações de afrodescendentes. Na época do meu pai, o objetivo era ser o mais português possível, mesmo quando eu era miúda era isso que acontecia. Quando me perguntavam “de onde vens?”, nós dizíamos de maneira muito veemente “sou portuguesa”. Hoje já é diferente e já digo sem problema nenhum “sou portuguesa de origem cabo-verdiana” porque há uma consciencialização do nosso lugar na sociedade e que de facto a diversidade é uma mais-valia e não um problema. Nós queremos ter uma voz, e isso é normal. A partir do momento em que essas vozes estão mais presentes, claro que o outro lado, o lado racista que quer continuar com a sua hegemonia, o seu poder, reage. Existe um retorno. Isso cria tensões mais visíveis, mas que tem que ver com o facto de os afrodescendentes agora saberem que têm de ter o seu lugar, que não temos de ser invisíveis e que temos direito à fala. Isso é algo de muito importante e que em mim mudou imenso, já não tem nada que ver com quando eu era pequena. Um dos objetivos deste livro, que é o mesmo do conto “Céu de carvão, mar de aço”, cuja protagonista era feminina, é mostrar a que ponto as pessoas racializadas se sentem exatamente com um branco ou como quem quer que seja. Existe a noção de que o corpo negro é um corpo que pode sofrer mais, porque temos presentes aquelas imagens da escravatura. Para mim é importante mostrar um personagem negro, que é um personagem que chora, que tem problemas quando sai do seu país e que nos merece todo o respeito.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Márcia Balsas autora de “Voar no quarto escuro”

Quarta-feira, 16 de outubro, 9h30

Domingo, 20 de outubro, 14h25

 

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