Nuno Gomes Garcia conversa com Márcia Balsas: “Este livro é sobre vários tipos de violência”

Márcia Balsas nasceu em Coimbra em 1977 e é uma das mais destacadas bloggers portuguesas a escrever sobre Literatura. Ela é a criadora do blogue literário “Planeta Márcia”, plataforma onde, ao longo dos anos, foi analisando e criticando dezenas e dezenas de obras, entre as quais as de muitos autores portugueses. Paralelamente, a Márcia foi a fundadora do maior clube de leitura da cidade de Lisboa.

De leitora voraz, a Márcia passou então à etapa seguinte e tornou-se ela própria escritora, começando pelos contos. Graças a um deles foi uma das vencedoras do Prémio Literário de Novos Talentos FNAC no ano passado. Este romance é a consequência natural de todo este processo.

“Voar no quarto escuro” é um livro feminino que retrata a vida de seis mulheres, entre as quais se encontra Eduarda, e que explora um dos mais graves flagelos que afetam a sociedade portuguesa: a violência doméstica exercida sobre as mulheres. Uma problemática que começa enfim a ser tratada de forma sistemática pelas escritoras lusófonas.

A escrita madura de Márcia Balsas conta então essas histórias, aparentemente desligadas umas das outras, mas que, de uma forma bastante engenhosa, se vão cruzando à medida que o romance avança. Mulheres oriundas de contextos socioeconómicos muito diversos, com empregos de maior ou menor prestígio, que retratam uma realidade incontornável: não existe estrato social que seja imune à violência doméstica.

 

Márcia é inevitável falar do teu percurso enquanto fundadora de um dos bons blogues sobre literatura existentes em Portugal. Em que medida é que essa experiência contribuiu para que tu própria te transformasses em escritora?

Olha, o blogue foi onde comecei a escrever. Foi fundamental. Apesar de agora ser diferente e ter passado à ficção, foi ali que comecei a mostrar a minha escrita a toda a gente, e, surpreendentemente, o blogue foi sendo reconhecido e eu fui gostando cada vez mais de publicar e até de, através dele, entrar em contacto com outros leitores.

 

Tu és a prova de que sem muita leitura, leitura quotidiana, é muito difícil alguém tornar-se escritor.

Eu não sei se o meu percurso pode representar algum tipo de prova, mas eu confirmo que, segundo a minha experiência, a leitura é fundamental. É onde vamos beber, onde aprendemos e desenvolvemos alguns mecanismos para depois passarmos nós próprios a fazer esse trabalho.

 

Eu devo admitir que o teu blogue é um dos meus instrumentos de trabalho. Como vivo longe, nem sempre estou ao corrente do que é publicado em Portugal e fico a conhecer muitos livros através do teu blogue.

Inevitavelmente, ele teve de ficar um pouco parado para este processo de escrita, porque não se consegue estar em todo o lado, mas mesmo assim acho que foi uma boa troca.

 

Explica-nos as razões que te levaram a escolher o tema da violência doméstica para este teu primeiro romance.

Este livro é sobre vários tipos de violência. Essa é um início, é uma forma de começar. Eu gostava de dizer que vai muito além disso, mas a experiência de ser mulher e feminista foi fundamental para avançar com esse tema. No trabalho, na sociedade em geral, todas as mulheres continuam a ter aquela sensação: “se fossemos homens seria mais fácil”.

 

Achas que uma mulher tem de dar mais provas, perante a sociedade, do que um homem?

Sim, julgo que sim. Nomeadamente no aspeto profissional. Isso é claro. Noutros aspetos poderá ser mais disfarçado.

 

Márcia, em Portugal a violência doméstica é considerada um crime público. O que significa que o procedimento criminal não está dependente da queixa da vítima. Basta, por exemplo, uma denúncia anónima para que o Ministério Público promova um processo contra o agressor. Mesmo assim, apesar deste avanço, os números que temos sobre a violência exercida sobre as mulheres ou mesmo o número de feminicídios são ainda muito altos. Na tua opinião, o que falta fazer para acabar de uma vez por todas com esta epidemia?

Essa é uma pergunta muito, muito difícil. Os números são de facto assustadores. Os homens são mais fortes. Isto é uma história que parece não ter fim. Há também o papel da submissão da mulher. É muito perigoso. Uma espécie de subjugação do mais fraco ao mais forte. E depois, como já disse, há o aspeto físico, os homens são mais fortes e não há nada a fazer. Portanto existe aqui uma necessidade urgente de educação ou reeducação para controlar ou contornar com esta epidemia, como dizes.

 

Este teu livro cruza as histórias de seis mulheres. Foi difícil, até do ponto de vista técnico, fazer esse cruzamento entre tantas e diversas personagens?

Foi surgindo. Este foi um livro que foi acontecendo. Tinha, claro, um planeamento, que acabou por ser totalmente aniquilado e nada respeitado. Inicialmente o projeto era um livro de contos. E isso nota-se um pouco, esta minha paixão pelo conto. É o meu género preferido. E é por isso que todo o livro tem uma dinâmica forte, que é uma dinâmica que tem que ver com o processo de escrita do conto, a dinâmica da rapidez. Neste livro, há sempre qualquer coisa a acontecer em cada capítulo, e isso para mim é importante e tem muito que ver com o processo de escrita do conto. O que é que acontece? Estas mulheres foram continuando a aparecer nos contos, ou nos capítulos, umas das outras, elas, com alguma naturalidade, foram-se cruzando ou entrelaçando sempre com esta ideia de todas elas, de diferentes formas, estarem sujeitas a processos de violência, alguns muito devastadores. A ideia que tive sempre durante a escrita do livro é uma ideia de inevitabilidade. Não é que eu acredite no destino, a questão não é essa, mas tive vontade de fazer uma espécie de exercício que por mais que se queira ou se tente há coisas que acabam sempre por acontecer. Foi isso que me pautou a escrita deste livro.

 

Fala-nos também do significado do título do livro para quem ainda não o leu.

Curiosamente, o título surgiu-me durante a escrita de uma parte que acabei por retirar. Surgiu de imagem, mas que no fundo reflete bem a ideia da busca destas mulheres, que é como se andassem sempre às cegas. E então esta ideia de voar, porque é um bocadinho mais do que andar ou do que caminhar, é passar um pouco ao estádio de caminhar num sonho ou avançar de outra forma, mas ao mesmo tempo não vês ou não sabes para onde vais.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: José Manuel Garcia, autor de “Fernão de Magalhães”

Quarta-feira, 10 de outubro, 9h30

Domingo, 14 de outubro, 14h25

 

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